Roberto Duailibi, o redator-diplomata


De bicho-do-mato a orador da turma

Quem vê o cosmopolita Roberto Duailibi, um dos mais respeitados líderes setoriais do segmento da publicidade, no Brasil, com seus ternos elegantes, porte distinto, voz grave e conciliadora, transitando comme il faut entre intelectuais e poderosos, não imagina o molecote de calçãozinho azul de elástico, sem camisa, que habitou-lhe os dias, na infância.

Criado solto pés descalços em terra vermelha, estilingue na mão atrás de cachorro e papagaio, Duailibi cresceu com a cabeça povoada das histórias sobre aventureiros que se enfiavam mato adentro, em busca de diamante e ouro nos garimpos das águas profundas dos rios a léguas dali da Campo Grande do Mato Grosso onde nasceu, em 8 de outubro de 1935, e virou menino, ao som da rádio Belgrano de Buenos Aires, do castelhano dos soldados paraguaios-germânicos desertores, das bugras ninando menino em guarani e do enorme clã dos Duailibi bradejando em árabe e francês.

Na indômita Campo Grande da década de 30, onde os fazendeiros resolviam seus problemas à bala e todo pai de família prudente andava com um trinta-e-oito na cintura, Duailibi surpreendentemente tornou-se um poliglota com generoso capital cultural para compreender meia-dúzia de idiomas que um dia o levariam bem longe daquele cenário de bangue-bangue:

Eu cresci ouvindo o árabe, o francês, o português, o italiano no colégio de padres salesianos, o guarani que eu falava bem até, quando era criança, por causa das babás e o espanhol, que eu falo muito bem hoje, que realmente é minha segunda língua (...) Uma vez (...) vi uma camionete parar, dois rapazes descerem ( ...) e um deles disse: Olha este filho da puta, mandou matar nosso pai e está bebendo cerveja de manhã. E os dois saíram dando tiro no cara (...) (DUAILIBI, 2005)


Naquelas tardes abafadas típicas da região Centro-Oeste do Brasil cuja fronteira vizinha com o Paraguai e a Bolívia, podia-se encontrar Duailibi também atrás do balcão da vasta casa comercial A Camponesa, do tio José Duailibi, um solteirão misto de dono de loja com dono de garimpo que, a pedido dos pais do menino - Wadih Galeb Duailibi e Cecilia Fadul Duailibi - ensinava ao jovem turquinho o milenar ofício árabe da boa venda, acompanhado de um comentário risonho aqui, outro gracejo acolá, alertando-o sobre o verdadeiro segredo do sucesso: "Meu filho, se elas não estiverem sorrindo, não estarão comprando". ( DUAILIBI, 2006:26).

Nascia ali uma insuspeitada vocação para o comércio, que o menino sequer atinava pois quando crescesse, já tinha decidido: ia ser médico e agradar ao pai, farmacêutico libanês cristão formado em Paris no final dos anos 10 e imigrado a São Paulo, Brasil, em 1920, com a incumbência de fundar a fábrica de perfumes Coty.

Mais de seis décadas depois das primeiras lições do tio José, o mesmo Duailibi filho de farmacêutico que acabou não estudando Medicina, explica a um jovem cearense, na sabedoria dos seus 71 anos, o quanto considera absolutamente fascinante conhecer as técnicas de vendas, em seu livro Cartas a um jovem publicitário ( 2006), discordando do velho parceiro, o publicitário Júlio Cosi Jr e da sua zombaria de que a última emoção da criatura humana é um jogo de baralho:

...a última emoção e, provavelmente, a mais intensa, é o fechamento de uma venda (...) Sempre considerei o ato de vender, o aprendizado sobre as vendas, o conhecimento sobre os tipos de consumidores, a teatralização do contato entre o comprador e o vendedor, (...) o uso das palavras para criar em sua mente toda uma situação de vantagens e benefícios, matérias absolutamente fascinantes.(...)

NOTA: Entrevista realizada no contexto do projeto "A propaganda brasileira: trajetórias e experiências dos publicitários e das instituições de propaganda", desenvolvido pelo CPDOC por iniciativa da ABP - Associação Brasileira de Propaganda e com apoio da Souza Cruz S.A., entre março de 2004 e fevereiro de 2005. (Disponível em: http://www.abp.com.br/propaganda_bra/downloads/Roberto%20Duailibi.pdf)

 No mesmo livro ( 2006), quando reforça seu amor à missão de vender e insiste no treino, no prazer do eterno aprendizado, vem à tona o turquinho da sua infância que fugia da rotina deambulando pelos matos de Campo Grande imaginando-se no centro das aventuras recheadas dos sobressaltos do garimpo:

O exercício rotineiro de uma outra profissão pode assegurar às pessoas um salário regular e até uma certa regularidade na vida, mas nada se compara ao exercício da venda com suas incertezas, seu constante aprendizado e suas emoções. ( DUAILIBI, 2006: 83-84)

Esse precioso capital cultural do gosto pelo risco e da escola de vendas cursada na vida prática do quinto dos sete filhos do casal Duailibi ( Victor, Lorice, Fauze, Teresinha, Roberto, Carlos e Sônia), que o faria diferir com importante destaque mais tarde no mundo da publicidade, não parou nas aulas da A Camponesa. Duailibi também treinava sua retórica na própria loja dos pais, em Campo Grande, a Madame Cecília, mais charmosa que a do tio - que comercializava de tecidos a comidas - lembra o sobrinho. Na Madame, vendia-se moda, roupas, tecidos, botões, tudo exposto em vitrines ocupadas por belos manequins importados pelo pai diretamente da fábrica da famosa Madame Tussaud, a mesma do Museu de Cera de Londres onde se encontram os clones em cera das maiores celebridades do mundo, verdadeiras obras-de-arte.

Muito requintado o capital cultural que papai Wadih transmitia ao filho, conectando suas referências culturais não com a incipiente São Paulo metropolitana dos anos 30, mas com a vieille métropolite Paris, onde ele próprio havia morado, quando estudante. Em um de seus relatos, aliás, Duailibi reporta-se ao seus ancestrais com um snobish capital cultural naturalizado, principalmente quando fala dos avós maternos. Perguntado sobre a razão de seu pai Wadih, filho de um joalheiro libanês da cidade de Zahle, aparentemente sem muitas posses, ter ido cursar Farmácia em Paris, ele responde o porquê da influência francesa em sua família: o Líbano era protetorado da França.

 ...provavelmente as melhores escolas de farmácia eram na França. E era um curso universitário. Então, ele foi para lá, viveu seis anos em Paris. Participou da vida parisiense do começo do século com bastante intensidade. (...) Porque, na verdade, a capital do Líbano era Paris, o Líbano era uma extensão da França. Tanto que o meu avô materno também tinha negócios com a França ( ...) Portanto, a influência era muito francesa lá em casa. Até hoje a memória bilíngüe na minha infância é uma coisa bastante importante. (DUAILIBI, 2005.)


Na loja em Campo Grande com o nome de sua mãe, Duailibi e o irmão mais velho Fauze, aficcionados por histórias em quadrinhos e apaixonados por desenho, criavam cartazes feitos à mão por eles mesmos, inspirados em revistas da época, copiando idéias da Fon-fon, de moda, contagiados pelo dia-a-dia da loja onde volta e meia se fazia necessária uma rodada de ofertas. O ambiente onde Duailibi cresceu já se constituía, de per si, em espaço dos possíveis - para usar um termo bourdieano que significa algo como "facilitadores" - para a atividade de vendas que é, no fundo, a publicidade:

O fato de crescer em uma loja, já, de certa maneira, encaminhou a minha profissão, porque eu convivia com promoções, convivia com o viajante, que visitava a loja e abria o mostruário. Eu me lembro perfeitamente dos armários da Linha Corrente, que eram obras de arte, na época, porque era um trabalho de marcenaria fora do comum. (DUAILIBI, 2005.)

Depois de ficar dois anos em São Paulo montando a iniciante fábrica da Coty, e agora já casado com Cecília - filha de um libanês de sobrenome Fadul e de uma veneziana de sobrenome Vianello - o jovem farmacêutico Wadih Duailibi não negou o sangue árabe. Em 1925, trocou os perfumes da Coty por seu faro para o comércio e montou uma loja de armarinhos em sociedade com primos, no Rio de Janeiro, chamada Três Irmãos, depois trouxe uma filial da loja a São Paulo, onde também fornecia uniformes para o Exército paulista.

Nota: Fon-Fon, revista brasileira surgida no Rio de Janeiro em 1907, publicada até agosto de 1958. Idealizada pelo escritor e crítico de arte Gonzaga Duque, era ilustrada por célebres artistas - inclusive Di Cavalcanti - e tratava principalmente dos costumes e notícias do cotidiano, primórdios da Industria Cultural brasileira, que se apropria do espírito da Belle Epoque, na ânsia de modernidade como Ortiz ( 1988 ) detecta haver acontecido no Brasil feito um "valor ostentatório", literário, muito antes da própria modernização brasileira - leia-se industrialização, por exemplo - acontecer.

Uma década depois, em 1932, atraído pelas lendas dos garimpos narradas pelo tio José Duailibi e outros parentes que já moravam no Mato Grosso, e convencido por seu amigo, o General Klinger, de que o 1º Regimento de Campo Grande iria precisar de uniformes pois logo logo apoiaria uma revolução em São Paulo (a Constitucionalista, de 32, contra Getúlio), Wadih vendeu a sua parte na Três Irmãos e mudou-se para Campo Grande, com mulher e quatro filhos:

A história de meu pai ir para Mato Grosso, além da atração do garimpo, teve um motivo muito curioso. Ele era muito amigo do general Klinger. (...) começou a fabricar os uniformes para o Exército em São Paulo já, em pequena quantidade. Aí, o Klinger pediu, isso foi em 1930, que ele mudasse para Mato Grosso porque viria uma revolução ( ...) Ele mudou as máquinas, levou para Campo Grande em 1930, 31; aí a revolução começou, a Revolução de 32, e em três meses foi esmagada. O Eurico Gaspar Dutra entrou em Campo Grande, Klinger foi preso e os meus pais ficaram lá...(DUAILIBI, 2005.)

NOTA: Bertoldo Klinger(1884-1969) teve participação na articulação da revolta tenentista de 1924, em São Paulo, sendo depois transferido para o comando do 1o Regimento de Artilharia Mista do Exército sediado em Campo Grande, atual capital de Mato Grosso do Sul. No Mato Grosso, comandou contingentes legalistas que combateram a Coluna Prestes, na década de 1920. Foi um dos líderes da Revolução Constitucionalista de 1932, movimento de oposição ao governo de Getúlio Vargas, deflagrado pelas forças políticas tradicionais do estado de São Paulo, que se viram marginalizadas do processo político após a vitória da Revolução de 1930. Sua função, no movimento, seria deslocar as tropas de Mato Grosso para São Paulo, o que acabou não acontecendo. Com a derrota da Revolução, Klinger foi preso e mandado para o exílio em Lisboa junto com outros revolucionários. (Roberto Duailibi (depoimento, 2004). Rio de Janeiro, CPDOC, ABP - Associação Brasileira de Propaganda, Souza Cruz, 2005.)

Segundo a estudiosa do Líbano, Lody Brais, coordenadora do site libanbylody.com.br, a imigração libanesa ao Brasil começou antes de D. João VI chegar ao país, documentada em arquivos que Brais afirma constarem da Biblioteca Nacional de Portugal. Já em 1808, o imperador teria sido recepcionado no Rio de Janeiro por um libanês de nome Antun Elias Lubbos, conhecido como Antônio Lopes, que ofereceria a D. João VI uma luxuosa casa para morar, mais tarde transformada no Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, cujo documento de doação - garante Brais - pode ser confrontado no Museu Histórico e Geográfico Nacional do Rio de Janeiro.

A maior imigração libanesa ao Brasil, no entanto, conforme Brais, teria ocorrido a partir de 1880, duas décadas depois de um massacre da guerra incentivada pelos opressores turcos otomanos entre muçulmanos e cristãos. Esse fato, e mais a visita do imperador D. Pedro II , grande apreciador da cultura árabe - diz Lois - ao Líbano, em 1876, percorrendo o país, encontrando autoridades e palestrando para camponeses.

NOTA: O epíteto turco erroneamente empregado no Brasil para referir-se, muitas vezes jocosamente, a libaneses, sírios e árabes em geral, deve-se a que os imigrantes aqui chegados portavam passaportes emitidos por quem mandava no seu país - os turcos - equívoco, aliás, explicado por Jorge Amado ( 1992, São Paulo: Record), em seu romance A descoberta da América pelos turcos, onde conta a chegada do árabe Jamil Bichara à cidade de Itabuna, no início do século XX.

Na década de 30, Duailibi relata como a estrada de ferro que ia de Bauru, em São Paulo, a Corumbá, no Mato Grosso, facilitou a ida da sua família e de centenas de imigrantes libaneses e japoneses, entre outros, para aquelas bandas do Brasil:

No Brasil, as estradas de ferro levaram à ocupação da terra. (...) Foi o investimento na estrada de ferro Noroeste do Brasil, que partia de Bauru até Corumbá, que levou o desenvolvimento para aquelas regiões. Levou inclusive os imigrantes. (DUAILIBI, 2005.)

Ao longo do seu depoimento ao CPDOC da Fundação Getúlio Vargas ( 2005), percebe-se claramente o quanto Roberto e sua família estiveram sempre envolvidos com importante capital social, reputado por Bourdieu (1996) como valioso gerador de espaços de possíveis. Percebam-se as relações: quando vem para o Brasil, o pai de Duailibi vem fundar uma fábrica de perfumes francesa, a Coty; quando vai para o Mato Grosso, vai a convite de um General, o Klinger; quando Duailibi fala da mãe italiana de sua mãe, a veneziana Ada Vianello, enfatiza que entre os tantos Vianellos de Veneza havia até um doge. Ele desfia, também, uma lista razoável de parentes famosos de São Paulo: sua avó materna era irmã da mãe do ex-presidente do Banco Central de Sarney, Pérsio Arida, e tia do poeta, escritor e escultor Edmundo Gregorian, que havia estudado na Sorbonne, trabalhado na Record e casado com uma pianista dita célebre Yara Bernette, e também com a atriz portuguesa Beatriz Costa. Outro irmão da sua avó italiana de nome Nino Nelo (Giovanni Vianello), dono de teatro, além de ator era autor de textos sobre as famílias de italianos imigrantes em São Paulo. E havia ainda mais outro seu tio-avô, irmão da mesma Ada Vianello, que Duailibi diz ser um dos pioneiros da Globo, chamado Alfredo Viviani:

 A gente convivia muito com os pintores e os escultores de origem italiana (...) A família Vianello é muito grande em Veneza. E foi uma influência muito grande também na minha infância. (DUAILIBI, 2005.)

Mas o farto capital social da família do jovem Duailibi não se esgotava por aí. Quando fala do seu avô materno, marido da signora Ada Vianello, Duailibi também se escarrapacha, apoderando-se inclusive do Mar Mediterrâneo:

E a minha mãe tem uma história mais ou menos parecida [com a do meu pai], porque o pai dela, o Nacib Fadul, era um homem muito rico, dono de toda a Várzea do Glicério lá em São Paulo, e casou com uma senhora italiana, Ada Vianello, veneziana. (...) Era um mundo à parte, o Mediterrâneo, e havia muito casamento entre, por exemplo, libaneses e italianos por causa exatamente da religião.(...) Aí, eles vieram para cá. Ele ficou muito rico aqui, já veio rico e ficou muito mais rico aqui no Brasil e voltou para o Líbano, porque ele tinha negócios de seda (...) (DUAILIBI, 2005.)

Para arrematar, registre-se ainda outro parentesco notável: o irmão do tio José Duailibi de Campo Grande, o da A Camponesa, de nome Jorge Khalil Duailibi, além de educadíssimo - Duailibi não deixa por menos - tinha sido "campeão mundial de tiro na Europa".

Não bastasse tanto capital social, Duailibi recorda ainda que naqueles anos 1900 os imigrantes se mantinham bem longe de intimidades com os brasileiros, por medo de contrairem sífilis, tratando de se proteger da terrível doença venérea transmissível à descendência, casando-se apenas entre si, na mesma colônia, ou no máximo com outras colônias de imigrantes, judeus, italianos, libaneses ou alemães:

Havia uma quase hostilidade contra os nativos, digamos assim, os brasileiros. Às vezes, a gente vê nas novelas a sociedade brasileira desprezando o imigrante; eu acho que era exatamente o oposto. O imigrante desprezava a sociedade. Eu me lembro, entre os italianos, por exemplo, o brasileiro era sinônimo de sifilítico. Não se casava com brasileiro porque a percentagem de sífilis na população brasileira era muito alta e isso era um risco para os descendentes. Isso acontecia em todas as colônias, pelo menos em São Paulo e Mato Grosso. (DUAILIBI, 2005.)

Ser imigrante era, de certa forma, ser pelo menos um degrau acima de ser brasileiro. Ele mesmo, Duailibi, casaria com uma filha de outra colônia, a de judeus alemães, a loura secretária bilíngue do atendimento, Sílvia, que conheceria em 1952, no seu primeiro emprego em publicidade, na Colgate Palmolive, em São Paulo e com quem teria um casal de gêmeos, também louros: Rubens e Marco, o último, curiosamente, na mesma profissão do avô paterno de Duailibi, o haddad (isto é, o ferreiro/joalheiro, em árabe) Galeb Duailibi.

Nos idos de 40, ainda em Campo Grande, Duailibi e os irmãos recebiam também importante capital cultural do pai que, além de incentivá-los à leitura com a abundante oferta em casa de livros, jornais, revistas e até das histórias em quadrinhos proibidas pelos severos salesianos do colégio local, também os iniciava na arte da oratória, segundo Duailibi, uma virtuosa tradição árabe:

... meu pai escrevia muito bem, fazia poesia. Enfim, ele cultivava muito a tradição, que existe entre os libaneses, da oratória, por exemplo. Ele obrigava a gente a decorar poesia, a fazer saudações na mesa quando alguém fazia aniversário, quando tinha alguma coisa muito especial, datas especiais. Daí porque você vê tantos libaneses na política, porque é uma tradição realmente cultivar a oratória. (...) (DUAILIBI, 2005.)

Não é de estranhar que, com tamanho treinamento na infância o turquinho Duailibi fosse o escolhido pelos colegas para ser o orador da sua turma no ginásio, no Colégio Benjamin Constant, em São Paulo.

Não é de estranhar, também que, ao ingressar mais tarde na propaganda, Duailibi se transformasse em um dos mais exímios apresentadores de campanha, convencendo sem grande esforço e com diplomacia seus clientes do valor da criatividade, a matéria-prima e " illusio" que iria lhe fazer a fama, em sua carreira de redator e mais tarde empresário publicitário.


De aprendiz de comunista a publicitário

1948. Desgraça na família Duailibi. Fauze, o terceiro filho de Wadih e Cecília, cumprindo serviço militar na Aeronáutica, é contaminado por gravíssima infecção alimentar, no quartel e, vítima de erro médico no próprio atendimento da Aeronáutica, morre três dias depois, aos 18 anos de idade. Some-se a isso outra tragédia, essa financeira, e entende-se porque os Duailibi, no mesmo ano de 1948, decidiram ir embora para São Paulo:

A mudança se deu também por razões que a gente nunca esqueceu, que foi uma moratória imposta pelo governo de então [ Dutra], para as dívidas da agricultura. Os meus pais tinham créditos enormes com os fazendeiros porque eles continuavam fornecendo a roupa para os colonos. E quando veio esse decreto, o comércio todo de Mato Grosso foi à falência. Os fazendeiros simplesmente não pagaram mais ninguém, nem os bancos nem o comércio. E muita gente saiu de lá naquela ocasião porque não tinha mais perspectivas. (DUAILIBI, 2005.)

Duailibi tinha 13 anos e a vida recomeçava, em São Paulo, no bairro classe-média Vila Mariana, na Rua Eça de Queiroz, preferido por muitas famílias libanesas. Na capital paulista já havia o Túnel 9 de Julho, a Via Anchieta, o Estádio do Pacaembu, o Hipódromo Cidade Jardim, a USP, o recém-inaugurado MASP - Museu da Arte Moderna de São Paulo, na sede dos Diários Associados, no centro, e, havia até Coca-Cola nacional, vinda da primeira fábrica de Coca-cola no Brasil, em São Cristóvão, RJ. A inflação anual era de 3,4% e a população do país atingia a marca de mais de 41 milhões de habitantes.

No mundo, a Europa se recuperava da II Guerra, reconstruindo as cidades destruídas pelos bombardeios com o apoio do Plano Marshall norte-americano; Gandhi, o líder espiritual da independência da Índia, era assassinado por um extremista hindu, e, no Oriente Médio, nascia o Estado de Israel. A mesma ONU que um ano antes havia disposto de 50% das terras palestinas em favor dos judeus, neste ano de 1948 aprovava a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Nos Estados Unidos, o biólogo e zoólogo Alfred Kinsey chocava a sociedade norte-americana com seu Relatório Kinsey, sobre o comportamento sexual masculino, enquanto Marlon Brando estrelava Um bonde chamado desejo, de Tennesee Williams, em Nova York.

Embora traumatizado pela morte do irmão Fauze, Duailibi encontrou pelo menos um ponto positivo na Paulicéia: o colégio onde cursaria o resto do ginásio ficava bem em frente à sua casa, na Eça de Queiroz, bastando atravessar a rua. Era o Benjamin Constant, antiga Deutsche Schule zu Villa Marianna, e Duailibi reconhece que recebeu uma influência alemã muito intensa, capital cultural adicional: "Era um colégio, eu diria hoje, olhando de memória, até bem nazista", ele observa.

Findo o ginásio, Duailibi, que se preparava para cursar Medicina foi fazer o científico no Colégio Bandeirantes, considerado a melhor escola de São Paulo - segundo ele - e também vizinha da sua rua, a apenas uma quadra de distância, onde o filho de Wadih, já começando a desviar-se do caminho das ciências médicas, praticava também teatro amador com os colegas do curso clássico (embora cursasse o científico) e divertia-se como ator dos diretores Flávio Rangel e Manuel Carlos.

Duailibi tinha 17 anos. O pai, que nunca mais se recuperou da perda do filho Fauze, e diante também das difíceis circunstâncias financeiras, acabou ficando doente e falecendo, deixou Cecília viúva, vivendo de costuras, com seis filhos por terminar de criar, alguns filhos, porém, já encaminhados: o primogênito Victor, formado em Química, ganhava seu salário, a irmã, trabalhava num banco, e o nº 5, Duailibi, estudava de manhã no Bandeirantes e também trabalhava à tarde, primeiro em um jornalzinho local, Jornal de Vila Mariana, em que escrevia, desenhava e captava os anúncios dos comerciantes, e depois no Banco de Boston, no setor de cobrança, rotina que ele detestava, que lhe despertou insuspeitada asma alérgica, e onde ele só fazia se perguntar: "Será que trabalhar é isso, fazer hoje a mesma coisa que eu fiz ontem e provavelmente a mesma coisa que eu vou fazer amanhã?" (2005).

Começava ali o desejo de trabalhar em uma profissão sem rotina, onde cada dia fosse diferente do anterior. Começava ali o desejo de trabalhar, por exemplo, em propaganda. Duailibi conta que gostava muito de ler a revista PN, Publicidade e Negócios, cuja exerceu forte influência em sua decisão futura de abandonar a idéia de Medicina: "Eu lia a PN nas bancas porque não podia comprar. Mas ia na banca e lia", ele recorda ( 2005).

O Banco de Boston, se era monótono demais para o seu gosto serviu, porém, para encaminhá-lo a um insólito rumo clandestino, que havia começado nas aulas de teatro no Bandeirantes e se estabelecido quando presenciou a atuação panfletária do sindicato dos bancários. Duailibi garoto via aquela gente a pregar idéias socializadoras muito parecidas com as idéias cristãs que ouvia nos tempos do colégio de padres de Campo Grande, do tipo "para Deus, todos somos iguais" etc, ficou interessado e foi a uma reunião do sindicato onde conheceu membros do PCB, Partido Comunista Brasileiro, partido, aliás, proibido pelo governo de Getúlio Vargas. Como desde garoto Duailibi gostava de desenhar e sem noção do quanto estava se arriscando, ele acabou aderindo a uma célula de desenhistas do PCB onde, junto com outros quadrinhistas mais tarde célebres como Maurício de Souza e Alvaro de Moya, ensinava desenho a pessoas menos favorecidas, além de ler sobre marxismo e preparar reivindicações por uma legislação que favorecesse os quadrinhos nacionais no lugar dos privilegiados quadrinhos americanos que imperavam nos jornais brasileiros. O PCB, quem sabe, exercendo o papel de provedor adulto de capital cultural ao adolescente Duailibi, no lugar do pai ausente, influência que - segundo o seu depoimento ao CPDOC - durou dos 16 aos 20 anos (1955), resultando em grande peso na sua formação ideológica e provavelmente o que o encaminhou, mais tarde, ao curso superior de Sociologia.

Em 1953, de novo o bairro Vila Mariana lhe acena com a sorte e conspira contra o curso de Medicina ao qual Duailibi persistia em se preparar. Um anúncio classificado da vizinha Colgate-Palmolive no jornal O Estado de São Paulo procurava alguém para o seu departamento de propaganda. Duailibi nem sabia direito o que era departamento de propaganda, mas candidatou-se ao cargo, segundo ele, modesto, provavelmente de boy ou assistente e conta que foi aceito, imagina que talvez por dois motivos: sua boa formação e a proximidade de casa. O serviço era mosca-no-mel para Duailibi, velho leitor de revistas desde a infância, embora jovem demais - ele tinha apenas 18 anos - para as obrigações que ia assumir.

Que maturidade teria um adolescente em 1951 para "analisar" o trabalho da concorrência publicitária da Colgate-Palmolive, tirar ilações, pressupor intenções de mercado por trás das mensagens, exercer juízos de valor sobre a qualidade ou não do material publicado nas revistas e escrever a respeito de tudo isso? Tão precário o campo da publicidade, na época, que um rapazola de boa formação em Humanas encontrava ali seu espaço dos possíveis em uma lacuna estrutural que o favorecia realizar o trabalho com as mesmas habilidades de um profissional com pelo menos 10 anos a mais que ele. No entanto, parece, não sabendo que estava acima das suas forças, Duailibi achou o trabalho " interessante":

...era fantástica a fábrica, o escritório era em cima da fábrica. E essa Sílvia Jatobá [ sua chefe imediata, redatora ] me deu grandes oportunidades. Ela gostava muito de mim e me deu umas tarefas interessantes. A primeira delas era analisar o que a concorrência fazia. Nós recebíamos todas as revistas do Brasil onde tivesse anúncios da Lever - não era nem Unilever ainda - e dos outros fabricantes de produtos de higiene e beleza. Talco Granado, todos esses. Eu tinha que analisar o tamanho do anúncio, ver na tabela quanto tinha custado para fazer um relatório semanal de quanto cada concorrente da Colgate estava investindo. E tinha que dar uma opinião sobre o anúncio também. Portanto, tinha de escrever sobre as campanhas. (DUAILIBI, 2005.)

O jovem Duailibi tinha sido picado definitivamente pelo vírus da publicidade, onde podia aproveitar seu rico capital cultural não só de árabe bom de vendas mas de redator e poliglota:

E d. Sílvia começou a me passar anúncios americanos para traduzir, que também foi uma coisa extremamente boa. Nessa época, exatamente com um ano e pouco de Colgate, eu prestei vestibular na Escola de Propaganda, ao invés de fazer medicina. E foi também um momento crucial na minha vida. A Escola de Propaganda era no Museu de Arte de São Paulo, na rua 7 de Abril, que era um lugar elegantíssimo. (DUAILIBI, 2005.)

A Escola de Propaganda a que Duailibi se refere foi o primeiro formato da atual ESPM, Escola Superior de Propaganda e Marketing, e havia sido fundada em 1952 por um grupo de publicitários apoiados por Assis Chateaubriand, dos Diários Associados, e pelo professor de arte italiano Pietro Maria Bardi, também jornalista, responsável pelo Museu, para formar mão-de-obra adequada às necessidades do mercado publicitário de então, integrado por agências como Thompson, McCann, Standard, Norton, entre outras:

...quando eu fui ver os resultados, para mim foi uma surpresa extremamente agradável ver que eu tinha tirado segundo lugar. O primeiro lugar foi do jornalista Evaldo Dantas Ferreira, o cara que descobriu o Eichmann aqui no Brasil. E todos os alunos eram jornalistas. Era uma turma de 36 alunos, só - e eu diria que, dos 36, 30 eram jornalistas que já trabalhavam em jornais. Era uma turma ótima, porque a gente estudava à noite, então dava para trabalhar durante o dia. (DUAILIBI, 2005.)

Atente-se aqui para o evidente espaço dos possíveis que Bourdieu (1996) enfatiza como facilitador na mudança do papel de dominado para dominante no campo da produção cultural: a maioria da turma de Duailibi na Escola de Propaganda era de jornalistas e trabalhava em jornais, não em propaganda. Pouquíssimos como ele, Duailibi, não eram jornalistas e, menos ainda os que já trabalhavam em propaganda, como ele e sua superiora imediata, a redatora carioca Sílvia Jatobá.

O curso durava um ano e dali para uma agência de verdade foi um passo. Mais tarde, inclusive, Duailibi tornou-se professor e diretor de cursos da própria ESPM, onde lecionou por muitos anos, fazendo parte até hoje do seu Conselho, além de também haver integrado o corpo docente da Escola de Comunicações e Artes ( ECA) da USP.

Em 1956, aos 22 anos, Duailibi vai ser redator na C.I.N. - Companhia de Incremento de Negócios, de Samuel Vilmar, que tinha a conta da fábrica de automóveis Vemag, onde o turquinho teve a oportunidade de exercer na propaganda o seu capital cultural de orador adquirido com o pai, na infância:

Essa foi a primeira campanha que eu apresentei. Foi muito interessante. A partir daí, eu me especializei em apresentação de campanha, porque também tem isso, uma coisa muito importante. Não é só criar, você tem que saber apresentar muito bem. (...) O criador pode eventualmente - se ele for um bom apresentador, é ele que apresenta - mas tem que ser o melhor apresentador da agência. Porque vender uma campanha é também, em si, um ato de persuasão muito importante. (DUAILIBI, 2005.)

Atenção para como Duailibi coloca no mesmo patamar de importância quem apresenta a campanha e quem cria a campanha, esclarecendo, sem nunca ter dito, as razões de haver assumido muito mais a posição de atendimento criativo que de redator, quando 12 anos depois funda a DPZ. José Ruy Gandra, em seu História da propaganda criativa no Brasil (1995:66), observa que Duailibi, a par de seu talento para as letras e sensibilidade para a criação, na verdade tinha, mesmo, era "alma de atendimento", facilitando a sua ação, mais tarde, na DPZ, como o "D", conhecido como dos mais diplomáticos vendedores.

Alma de atendimento e de pesquisador, aliás. Em 1957, a Escola de Sociologia e Política de São Paulo - segundo Duailibi - era um centro de confronto do pensamento da direita contra a esquerda e vice-versa, um ambiente acadêmico bastante ativo, uma escola desejada. "Era bom ter um diploma da Escola de Sociologia e Política", ele recorda ( 2005). Como já estava trabalhando (já havia inclusive concluído a Escola de Propaganda), Duailibi achava que lhe faltava ainda um outro tipo de conhecimento. Sentia que a prática publicitária deveria se alimentar de psicologia, de sociologia, de outras disciplinas que não apenas a habilidade literária ou habilidade artística ou habilidade musical, que sempre esteve muito na moda na Comunicação. Por isso foi fazer a Escola de Sociologia e Política, onde acabou conhecendo personagens como Delfim Neto, por exemplo, com quem diz haver cruzado no ambiente acadêmico. Mais um capital social e mais um capital cultural nos tantos que Duailibi já possuía.


De redator a dê maiúsculo

Ser redator de publicidade nos anos 50, onde a área era dominada principalmente por jornalistas e escritores, significava ocupar um relativo espaço privilegiado de intelectual da propaganda, ainda que infinitamente com menos honrarias que o nobre espaço do atendimento. Havia um espaço dos possíveis bourdieuano concreto facilitador de ascensão, se comparado à carência de nobreza do espaço para seus humildes pares, os chamados layoutmen, segundo Duailibi, "uma profissão modesta", até porque em geral era um sujeito oriundo da área gráfica. A influência no modo de fazer o texto publicitário brasileiro era 100% americana e o conceito, Duailibi recorda, era o de, se possível, prescindir do layoutman:

Você tem que fazer o seu texto suficientemente convincente para dispensar qualquer ilustração ou qualquer fotografia. O texto tem que ser, em si mesmo, persuasivo, vendedor (...) suficientemente interessante. Essa foi a minha escola, na verdade. Você tem que escrever um texto que dispense leiaute, ele deve vender por si mesmo. (DUAILIBI, 2005.)

A lacuna estrutural no organograma das agências de então reservava aos redatores bem melhor reconhecimento que aos layoutmen, a quem abundavam adjetivos pouco elogiosos e provavelmente salários idem, salvaguardadas algumas exceções, como o inglês Eric Nice (Thompson), o alemão Gerhard Wilda (Lintas), o português Licínio de Almeida (Standard), o brasileiro filho de italianos Alex Periscinotto (Almap) e os espanhóis José Zaragoza e Francesc Petit (Metro3), entre outros.

NOTA: No livro História da Propaganda no Brasil, de Renato Castelo Branco, Rodolfo Lima Martensen e Fernando Reis (São Paulo: T.A. Queiroz, 1990: 7-19), o escritor, poeta e redator Jorge Medauar escreve um capítulo de 12 páginas intitulado "Os intelectuais e a propaganda", que lista dezenas de escritores com carreira na propaganda, entre eles, Olavo Bilac, Bastos Tigre, Orígenes Lessa, Monteiro Lobato, João Antonio, J.G.de Araújo Jorge, Rubem Braga, Carlos Lacerda, Marcos Rey, Emil Fahrat, Benedito Ruy Barbosa, Mario Chamie.

 Antes deles - como diz Duailibi, fortalecido pelo seu capital cultural de redator - o layoutman era uma interferência com quem o redator não se misturava.

Nas palavras de Duailibi ( 2005), redator e layoutman eram "inimigos figadais" e não podiam nem trabalhar na mesma sala, porque o redator "não admitia trabalhar com aquele operário vindo da área gráfica":

...não se sabia, não se tinha noção do leiaute. Não existia diretor de arte, tinha o layoutman. E o layoutman era, em geral, um cara vindo da gráfica, com uma formação de gráfico. Ele ainda vinha com aquele cheiro de tinta e ele se confrontava com o redator, que era um intelectual em geral.(...) A presença do layoutman era uma interferência, era só para dar uma certa ordem para o texto.(...) O redator não se misturava com o diretor de arte, com o layoutman. O layoutman era um gráfico que, em vez de trabalhar no jornal, trabalhava em uma agência. A função dele era enfeitar um pouco o texto do redator. Era alguém que sabia distribuir, digamos assim, o texto e a ilustração; ele dizia quando tinha que ter ilustração, em geral desenhos, dentro de um anúncio. (DUAILIBI, 2005.)

Era o ano de 1957, período em que a indústria automobilística estava se implantando no Brasil e, conforme Duailibi, teria sido essa indústria que de fato criou o negócio de agência, o negócio de propaganda, em um período juscelinista de desenvolvimentismo, de produção, "um período importantíssimo na vida do país", ele ressalta. "O momento em que o Brasil deixou de ser a fazendona para se transformar em uma potência industrial" ( 2005).

Quem aproveitou-se desse desabrochar da produção automobilística, entre outras agências, foi a C.I.N., agência-eixo de Duailibi, de onde ele saía e para onde voltava toda vez que trocava de emprego: da C.I.N. foi para a Standard, da Standard para a Thompson, onde chegou a chefe de redação, com apenas 24 anos. Da Thompson voltou para a C.I.N., da C.I.N. foi para a McCann - onde ficou apenas 20 dias, porque lá o chefe, o redator "de atendimento" Francisco Gracioso - depois presidente da ESPM - pegava um lápis antes de ler o texto apresentado por Duailibi e já "saía riscando", o que deixava o turquinho indignado, pois considerava-se ótimo redator. Como continuava fazendo free-lance para a C.I.N., o dono, Samuel Vilmar, mais uma vez lhe ofereceu aumento - o dobro do salário da McCann - para voltar, narra Duailibi (2005), que não teve dúvidas: pegou as suas coisas e C.I.N., de novo. Não sem antes aprontar uma hilariante vingança contra o riscador contumaz:

Aí, eu peguei um texto do Gracioso, tirei do arquivo, texto que ele tinha escrito para a GM, passei para uma Olivetti lá, ou Remington, que tinha na McCann, para o papel rascunho e levei para ele, como se fosse uma tarefa. Ele pegou o próprio texto dele e começou a riscar. (..) Aí, eu falei: Olha, Gracioso.... Tirei a carta de demissão e falei: Estou saindo e só queria dizer que é um hábito chato... E hoje somos superamigos. Foi um episódio só, que nunca nos abalou, mas já era meio cômico. (DUAILIBI, 2005.)

NOTA: Maria José Lanzotti Barreras, em sua tese Pedagogia da Sedução: os publicitários e os anúncios de automóvel no Brasil dos anos 1956-1973 ( 2002).(PPGCOM PUCRS) estuda o impacto da indústria automobilística no Brasil, através dos seus anúncios publicitários, que, a partir do discurso, arquitetam um imaginário novo e "organizam a cultura", construindo consensos sobre o que é ser cidadão brasileiro e o que é ser cidadão indivíduo cosmopolita. Considerando publicitário um "intelectual orgânico" à Gramsci, com qualidades pedagógicas para socializar o consumo, que significa conforto e que, em última análise, significa civilização, a autora conclui: publicitários são "profissionais civilizadores",

É importante ressaltar uma significativa lacuna estrutural no mercado publicitário dos anos 60, onde havia poucos profissionais para muitos postos de trabalho e era não apenas aceito como bastante comum o mesmo redator prestar serviços como free-lancer para várias agências. Duailibi (2005), inclusive, revela que ganhava mais dinheiro como free-lancer que como redator empregado. Ele conta que a Varig, por exemplo, pagava parte dos seus serviços de free-lancer com passagens aéreas que ajudaram Duailibi a enriquecer ainda mais o seu capital cultural, viajando pelo Brasil e exterior.

Segundo o executivo Edeson Coelho, que trabalhou em várias ocasiões com Duailibi, tanto na Standard quanto na DPZ, Duailibi era considerado o melhor redator do Brasil, nos anos 60, inclusive Neil Ferreira o reconhece como seu "mestre" das letras, no período em que trabalhou na Standard (1963) como seu assistente de criação. Um dos trabalhos mais célebres do turquinho do Mato-Grosso, na Standard, foi o que criou para as coleções Club Um, da Rhodia. Junto com Livio Rangan, gerente de propaganda da Rhodia, Duailibi glamorizou "o fio sintético" - leia-se tergal, nycron, poliéster - e a carreira de modelo, criando, muito mais que anúncios, um conceito revolucionário de comunicar moda e de ajudar a indústria têxtil nacional, auxiliado por Adopho Bloch e sua revista Desfile e também por uma característica do seu habitus, a de haver crescido dentro de uma loja que vendia roupa. Assim, em vez de fazer anúncios de moda, Duailibi sugeriu a Rangan fazer reportagens de moda e publicá-las nas revistas da Bloch :

Eu falei com o Lívio: “Por que nós, ao invés de fazer anúncio, que você não tem dinheiro para isso, vamos fazer reportagens de moda e vender para as revistas.” (...) Ele falaria com os fabricantes de tecidos e com as confecções. Nós tínhamos o estúdio fotográfico na Standard, que era dirigido pelo Otto Stupakoff, então a gente produziria reportagens de moda, que era uma coisa já revolucionária na época também. ( ...) o Bloch, (...) que produzia na ocasião várias revistas - Desfile, a Manchete - viu nisso também uma oportunidade de economizar. Os fabricantes, os confeccionistas também viram uma oportunidade de divulgar os seus produtos e o pessoal dos tecidos.(...) ( DUAILIBI, 2005) 

A invenção da profissão de modelo, no Brasil, é atribuída também a Duailibi:

...a gente precisava ter manequim. E não existia essa profissão. (...) Então era preciso criar uma profissão, era preciso transformar essas moças inclusive em celebridades. E formou-se o primeiro grupo de manequins e começou-se a viajar. Fomos para a Bahia, fomos para a Amazônia, e isso era absolutamente revolucionário. E também tudo de graça, porque a gente fazia acordos com as companhias aéreas, principalmente com a Pan Air, que nos dava as passagens de graça para poder aparecer nas páginas da revista. (...) ( DUAILIBI, 2005)

Como se vê, apesar de considerado um grande redator, Duailibi foi mais que um homem de texto criativo, um estrategista criativo, um profissional com visão macro que parece contribuiu para mudar o conceito sobre a profissão, antes mesmo de ser o D da DPZ. Como ele mesmo relata, referindo-se ainda ao caso da Rhodia, que aconteceu nos bastidores da Standard:

foi uma época realmente, assim, seminal da propaganda brasileira, eu diria nesse sentido de lançar conceitos novos, de usar a propaganda como uma arma revolucionária para o desenvolvimento da sociedade, para fazer com que a profissão tivesse dignidade. Porque ao invés de ser uma profissão de corretores de espaço dos jornais e revistas, ela passou a ser uma profissão onde a criação tinha a prioridade, a idéia. ( DUAILIBI. 2005) 46

(Disponível em http://www.bioclimatico.com.br/pdf/entrevistas/SOS_HV023_%20RobertoDuailibi.pdf)

Outro exemplo do talento de Duailibi, este como " mero" redator, é um anúncio denunciando o desmatamento no estado de São Paulo, e " inaugurando" a idéia de reflorestamento, cujo título dizia "Hoje é um dia triste. É o dia da Árvore". E o texto justificava:

Como nos anos anteriores, comemora -se hoje mais um Dia da Árvore. Como nos anos anteriores, as crianças plantam mais uma arvorezinha na escola e recitam poesias para as professoras. Como nos anos anteriores, mais de 500 árvores estão sendo derrubadas em todo o Brasil - apenas nos 2 minutos em que você lê este anúncio. Assim. Sem controle algum. Sem que ninguém se preocupe em replantá-las. (...) Madeira é matéria- prima para fazer a cadeira em que você senta. A casa em que você mora. Os remédios que curam seu filho. Mesmo assim continuam derrubando árvores. Derrubando. Derrubando. Derrubando. E nunca plantando.(DUAILIBI, 2006: 66)

Já premiado profissional e de talento reconhecido por seus pares e pelo mercado, Duailibi volta para a Standard em 1967 e, aos 32 anos de idade, é convidado a assumir a gerência do escritório de São Paulo. " Foi barra pesadíssima", ele lembra. O Brasil se encontrava em plena ditadura militar, o ministro da Fazenda era Octávio Gouvêa de Bulhões, o do Planejamento, Roberto Campos, e Duailibi relata que o país havia mergulhado em profunda recessão, todo mundo em moratória virtual: ninguém pagava ninguém. Embora ali na Standard começasse o seu aprendizado do capital cultural de gestão empresarial que o qualificaria como administrador na futura DPZ, ele relata quão difícil foi lidar com números no lugar das letras a que estava acostumado:

...era uma coisa absolutamente estranha para mim: administrar a parte de RH que também não se chamava RH, era departamento de pessoal, ter que pagar as pessoas no fim do mês, enfrentar clientes que não pagavam e veículos que nos telefonavam desesperados para a gente também pagar as contas. (DUAILIBI, 2005.)

1968. Ano-chave na vida de Duailibi, quando ele sai definitivamente da Standard e da vida de empregado para o patamar de patrão. Existem duas versões para a sua saída da Standard. Na história contada por José Zaragoza, Duailibi teria pedido demissão porque fora preterido em favor de outro - seu amigo Edeson Coelho, aliás - para ser o presidente da Standard, cargo ao qual ambicionava, Zaragoza garante. Por seu lado, Duailibi conta que o que de fato aconteceu é que, a pedido dos sócios da Metro 3 Francesc Petit e José Zaragoza, a quem ele fazia free-lance de redação, estava procurando um profissional para assumir a gerência do estúdio. E seguiu-se o seguinte:

Comecei a entrevistar gente e, sempre que eu mandava alguém, eles, por algum motivo, não se identificavam. E em junho e julho de 1968, quando estava no auge essa moratória virtual no Brasil, eu estava profundamente insatisfeito na Standard porque não estava fazendo aquilo de que eu gostava, que era criar. De gerente o tempo todo, recebendo telefonemas de clientes para dizer para atrasar o pagamento, e de veículos pedindo para a gente apressar o pagamento. Era um inferno. Eu nunca tinha tido débitos na minha vida. (...) Eu apresentei mais um candidato na Metro 3, recusado de novo, e aí eu falei: Por que não eu? Não, mas você, impossível. Nós não temos dinheiro... Eu falei: Eu entro como sócio. Então, tá. Fizemos a Metro 3, os quatro sócios, 30% cada um e 10% o Ronaldo Persichetti. (DUAILIBI, 2005.)

Quando Duailibi foi pedir demissão da Standard, que ele diz ter sido, na época, a maior agência brasileira, e onde se gaba - em claro exercício de capital simbólico - de ter recebido o maior salário da propaganda no Brasil, todos teriam dito: "Você enlouqueceu! Vai largar a Standard para se juntar com dois espanhóis malucos?" (2005)

Em seu livro Cartas a um jovem publicitário ( 2006), Duailibi revela o que passava por sua cabeça quando foi visitar pela primeira vez a revenda de automóveis Borda do Campo, na Av. Santo Amaro, seu modesto futuro cliente na DPZ:

De vice-presidente da Standard, então a maior agência brasileira, com o maior salário da propaganda brasileira, recebido pelo presidente da Shell, pelo presidente da Sadia, olha eu aqui, agora, começando a vida do zero... ( DUAILIBI, 2006:29)

Bourdieu (1996) aponta que uma das características favorecedoras do ator dominado ascender a dominante dentro do campo da produção cultural, é aceitar riscos com mais galhardia que seus pares, além de aparentemente desimportar-se com os ganhos financeiros - pelo menos em um primeiro momento - e inclusive fazendo crer - e esse seria seu maior capital simbólico - que dá mais valor à arte em si do que ao dinheiro.

Com Roberto Duailibi, não foi diferente. Embora estivesse trocando um alto salário por uma incógnita, em pleno período de recessão econômica e exceção política, ele conta que sua mulher Silvia, a quem entregava todo mês o salário para administrar e a quem teria pedido a opinião, antes de se juntar aos espanhóis malucos, deu-lhe apoio total. Da esposa de origem judia-alemã imigrante, historicamente treinada a novos desafios, Duailibi recebeu o incentivo decisivo para seguir em frente, pois ela garantia que tinham dinheiro para viver pelo menos três anos sem problemas. "Aí, eu entrei de cabeça", conta Duailibi ( 2005). De cabeça no espírito da Revolução Criativa proposta por Bill Bernbach, focada basicamente em criatividade, coloquialismo e emoção, somada à revolução visual dos dois catalães, à estética impecável, antes de tudo, do layout tratado como a arte superior que aprenderam na Escola de Belas Artes Las Lonjas, em Barcelona, a mesma onde estudou Picasso e Miró.

Nasce assim, em julho de 1968, a agência DPZ, montada com as iniciais de seus sócios majoritários, todos "de criação": Duailibi, Petit e Zaragoza, a princípio no mesmo endereço da antiga Metro 3, na Alameda Casabranca, em São Paulo, e com quatro compromissos assumidos publicamente em um anúncio antológico onde o trio DPZ aparece junto - Duailibi no centro, sentado em uma sofisticada cadeira Forma de aço e couro: compromisso com a verdade, com a originalidade, com o bom-gosto e com a moral nos negócios.

... a mentira, o exagero e a omissão da verdade são os grandes coveiros da nossa profissão. A credibilidade na propaganda era zero porque era sempre considerada exagerada, mentirosa, enganosa. (...) Originalidade é a própria criatividade, mas ela exige um conhecimento muito grande de tudo o que está se fazendo no mundo inteiro para você ser original. Verdade, originalidade, bom gosto, que era uma coisa em que também sempre insisti porque a propaganda abusa do mau gosto. A propaganda é feia, a propaganda é mal escrita, a propaganda é barata. (DUAILIBI, 2005.)

Havia uma promessa anterior do cliente Ford - jamais cumprida, por sinal - de vir para a DPZ a sua polpuda conta. Na ausência, Duailibi, Petit e Zaragoza tiveram que se contentar com uma Ford menor, a revendedora Ford Borda do Campo, para quem criaram campanhas tão originais que, em pouco tempo, a pequena conta pagou-se sobejamente. A DPZ começou a aparecer no mercado e logo conquistou a conta de uma cadeia de lojas de cine-foto-som, a Fotóptica, cujas campanhas eram, também, a síntese criativa dos melhores princípios de Bill Bernbach: brincalhonas, bem-humoradas e nem por isso menos vendedoras. É antológico um dos primeiros anúncios da DPZ para a Fotóptica, no Dia das Mães, em que um homem aparece sentado no colo de uma simpática velhinha, sob o título: Mamãe Fotóptica. Um homem no colo de uma senhora idosa? Ora, direis, ouvir DPZs!

Os tempos estavam para atrevimentos. Nunca esquecendo que 1968 foi um ano-marco de mudanças não apenas no Brasil, mas no mundo, pipocando em reversões de comportamento, ética, política e econômica, das ruas de Paris às minissaias de Mary Quant, em Londres, às fardas militares na América do Sul.

Duailibi (2005) lembra que, de 1968 a 1972, só atenderam a pequenas contas, embora construindo importante capital simbólico para tudo o que significava ser DPZ, naquele momento: a primeira agência de criação administrada por donos criadores. Só em 1972 conquistariam a sua primeira grande conta: o Banco Itaú, que permanece na DPZ até os tempos atuais. Começava então o movimento das contas governamentais e com elas, um espaço dos possíveis bastante tangível construído pela ala nacional do setor publicitário ( leia-se Mauro Salles, da Salles, Roberto Duailibi , da DPZ e Mahfuz, Petrônio e Macedo, da MPM, entre outros) que resultou no favorecimento das agências com capital 100% brasileiro, alijando totalmente do processo as multinacionais.

Nós tínhamos criado junto aos governos uma estrutura, não de pressão, mas realmente de convencimento de que conta de governo tinha que ser dada para agência brasileira. Porque nós não tínhamos acesso, como não temos até hoje, a muitos anunciantes estrangeiros que alinham suas contas. E eu interpreto isso muito mais como uma discriminação contra a agência brasileira do que busca de eficiência, porque nem sempre a filial da agência alinhada é eficiente. Mas nós pagamos um preço por sermos empresas brasileiras. E a gente tinha que ter uma compensação. (DUAILIBI, 2005.)

Os militares, com seu ortodoxo espírito nacionalista, acabaram aceitando a proposta de reserva de mercado do setor publicitário, valorizada ainda mais por outra inteligente proposta à parte, feita por Roberto Duailibi, que acabou viabilizando economicamente a transformação do governo em anunciante. Duailibi valeu-se de dois importantes capitais sociais: um, por haver frequentado a Escola de Sociologia; outro, por ter nascido em Mato Grosso. Graças às portas abertas por Jânio Quadros, mato-grossense como ele e amigo do seu pai Wadih, somadas aos contatos de capital social costurados na Escola de Sociologia, Duailibi tinha um bom trânsito com os políticos da época. Em meados dos anos 70, formatou um paper de sólida argumentação e enviou-o a Delfim Neto e a Karlos Rischbieter - Ministros do Planejamento e da Fazenda, respectivamente - com uma objetiva sugestão: em vez de cobrar em dinheiro os veículos de comunicação que nunca pagavam seus empréstimos concedidos a eles pelo Governo, por que o Governo não aceitava receber o pagamento da dívida em espaço publicitário, nesses mesmos veículos? Era uma idéia inspirada no dono da revista Manchete, Adolfo Bloch:

O Adolfo Bloch comprava as coisas e dizia: Eu posso pagar em espaço. E com isso ele acabou criando muitos anunciantes. Qual era a mercadoria que ele tinha? Não tinha dinheiro, ele tinha espaço, páginas da revista. Com isso, ele realmente criou um patrimônio fora do comum. Não fazia parte da filosofia dele pagar em dinheiro, a não ser os funcionários. Mas fornecedores tinham que receber com a mercadoria que ele tinha, que eram páginas da revista. E com isso, acabou criando uma série de anunciantes novos. E inspirado talvez nesse exemplo, eu fiz um paper, dizendo que o Banco do Brasil não precisa cobrar, não precisa lançar como fundo perdido. Ele pode ser um anunciante. (DUAILIBI, 2005.)

NOTA: Com a globalização, as grandes contas multinacionais, por razões de economia de escala e padronização de sua comunicação, passaram a ser atendidas compulsoriamente por agências de uma mesma rede multinacional, no mundo inteiro, fenômeno conhecido por "alinhamento", que causou enormes perdas financeiras às agências nacionais.

Segundo Duailibi, a idéia pegou, principalmente em São Paulo, garantindo faturamento expressivo a muitas agências nacionais, inclusive à DPZ.


Antes de conquistar a substanciosa conta do Banco Itaú ( 1972), a fama da DPZ já havia cruzado fronteiras, graças a uma estratégia de Duailibi e de seus assessores de imprensa - segundo Duailibi, os pioneiros em usar assessoria de imprensa -, valendo-se do espírito de colonizado vigente em favor da própria agência: eles mandavam publicar anúncios da agência em revistas no exterior, depois tiravam cópias e as enviavam para todos os jornalistas brasileiros, mais os clientes e os prospects. Funcionou. Aqui e fora daqui: em 71, a revista japonesa de excelência gráfica e design Idea Magazine aponta a DPZ como a mais representativa agência latino-americana. Dez anos depois de muitos prêmios conquistados no Brasil, no Clube de Criação e Colunistas, e no exterior, no Festival de Cannes e no Clio, entre outros, a edição de 25 de maio de 1981 da mais respeitada revista sobre propaganda do mundo - a Advertising Age, americana - publicou o ranking das Brazil's Top Agencies, onde a DPZ ocupava a 6ª posição. Acima dela, MPM, Thompson, Almap, McCann e Salles. Abaixo, Norton, Denison, Standard, Artplan e Lintas. Nenhuma das concorrentes do ranking, porém, com tamanho reconhecimento: DPZ  " Uma das mais criativas agências no mundo - cresceu 124% em 1980". (1981) 

Na mesma semana, a DPZ publicou um símile da matéria, com o texto: "Este pequeno comentário da Revista Advertising Age vale mais do que todos os Clios e Leões que ganhamos". Treze anos depois de trocar o maior salário da propaganda do Brasil pela imponderável DPZ, Roberto Duailibi podia enfim comemorar bem mais que a conquista de dinheiro. <>


(Texto integrante da dissertacão de Mestrado em Comunicação Do porão ao poder, de Graça Craidy (PUCRS, 2007), editado pela Editora Dialética, em 2023. 

(Principal autor de fundo: Bourdieu, Pierre, As regras da arte.) 


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Washington Olivetto, redator: o golden boy

 

 

" Publicidade é a coisa mais divertida que se pode fazer vestido."

 

Washington Olivetto, citando o publicitário americano

 

Jerry Della Femina.

 

De reizinho a menino de aquário

 

 

Não. Ele não seria nem advogado, nem médico, nem engenheiro, como sonhava o vendedor representante de tintas e pincéis Virso Olivetto, em uníssono com o que todos os outros pais classe-média dos anos 50 almejavam para seus filhos homens.

 

Washington Luís Olivetto, paulistano, baixinho, desprovido de beleza singular, magro, mas leitor voraz de Fitzgerald, Salinger, Maiakovski e Monteiro Lobato, que o transformaram em privilegiado interlocutor, não iria desperdiçar em profissões tradicionais o seu nome de presidente da república escolhido a dedo por seu avô, filho de italianos, o nono Paulo Olivetto, nascido em Piracicaba/SP e fã do 15º presidente brasileiro deposto em 1930. Tampouco tinha queda para números, exatas ou métricas ortodoxas.

 

Washington queria, mesmo, era ser um vendedor dos bons, como o pai, que vivia recebendo prêmios na Pincéis Tigre por metas alcançadas. Mas, não qualquer vendedor dos bons. Queria ser um vendedor dos bons que pudesse ao mesmo tempo escrever, já que o tanto de leitura acumulado em sua memória desde os cinco anos, quando foi alfabetizado, acabou fazendo dele também um redator. E dos bons.

 

De 1951, quando nasceu, a 1955, quando nasceu sua irmã Ivani ( nome em homenagem à escritora de telenovelas Ivani Ribeiro), Washington teve uma infância saudável, alegre, povoada pelo afeto de avós, pais e principalmente de sua mecenas particular, tia Ligia, irmã do seu pai, bem situada diretora do SAMDU - Serviço de Assistência Médica Domiciliar e de Urgência ( espécie de INSS da época, fundado em 1949) e esposa do tio Armando Meloni, também oriundi e também vendedor de


 sucesso como o cunhado Virso, o casal especialmente encantado com o pequeno Washington que supria sua carência de impossibilitado de ter filhos.

 

Washington Luís Olivetto era o primogênito de Virso e Antônia, ambos descendentes de italianos. Olivetto com dois tês, de Liguria (norte da Italia) como enfatiza Washington, que imagina ser provavelmente tataraneto bastardo de um nobre com uma mulher do povo, pois em épocas passadas - ele soube - os aristocratas italianos daquela região, quando geravam filhos fora do casamento, dobravam uma letra do sobrenome do rebento, em sinal tanto de reconhecimento como de ilegitimidade. Como contou à revista A próxima viagem ( 2003):

 

 

Meu bisavô cometeu o pecado de nascer pobre em Portofino. Os Olivetos de Porto Fino eram todos ricos, com exceção de meu avô, e eu descobri por que: o Olivetto dele era com dois 't', como o meu. É que os filhos bastardos recebiam um 't' a mais no nome, para diferenciá-los. Meu tataravô, suponho eu, teve um filho com uma camponesa gostosa. ( OLIVETTO, 2003)

 

Corria o ano de 1955, Sabin ainda nem tinha descoberto a vacina anti-poliomelite definitiva ( só seria aprovada em 1961) e o pequeno rei da família Olivetto, de uma hora para a outra - exatamente quando nasceu a irmãzinha Ivani - teve uma febre alta e parou de caminhar, por causas nunca descobertas pelos médicos. Parou de caminhar igualzinho a um bebê, talvez dissesse qualquer psicólogo ou pediatra, hoje em dia, considerando tal comportamento provavelmente resultado de ciúmes entre irmãos, coisa que dá e passa.

 

 

Tia Lígia, no entanto, não quis esperar para ver. Apavorada com a possibilidade de o sobrinho ficar paraplégico pelo vírus da chamada paralisia infantil, e após consultar médicos e mais médicos e nenhuma causa ser constatada, a irmã de Virso convenceu o irmão e a cunhada a deixá-la levar o pequeno Washington para cuidá-lo em sua casa, na Aclimação, bairro classe-média próximo à Av. Paulista onde moravam apenas ela e o marido. O intuito alegado era louvável: evitar o contágio da doença na pequena recém-nascida e cuidar de perto do tratamento de Washington que mais tarde, adulto, confessou: conseguia se mover, sim, mas por precaução dos adultos era preservado do esforço. Terríveis cobertores quentes nas pernas, ele relata,

 

 

lembrando os 365 dias e noites numa cama. Preço alto mas, pelo jeito, compensador, para que ele pudesse continuar no papel de reizinho da casa, agora, da casa Tia Lígia.

 

Nesse período, de 1955 a 1956, impedido de viver vida normal de menino, Washington tornou-se um menino de aquário - como diria Mario Quintana ( 2004), ele mesmo, um confesso menino de aquário, de infância doentia e recolhida.

 

 

Eu fui um menino por trás de uma vidraça – um menino de aquário. Via o mundo passar como numa tela cinematográfica,

 

mas que repetia sempre as mesmas cenas, as mesmas personagens. Tudo tão chato que o desenrolar da rua acabava me parecendo apenas em preto e branco, como nos filmes daquele tempo.

 

O colorido todo se refugiava, então, nas ilustrações dos meus livros de histórias, com seus reis hieráticos e belos como os das cartas de jogar.

 

E suas filhas nas torres altas – inacessíveis princesas. Com seus cavalos – uns verdadeiros príncipes

na elegância e na riqueza dos jaezes. (...) (QUINTANA, 2004. )

 

 

Para aliviar o tédio e amainar seus longos dias, a mãe Antônia, a avó paterna Judite e a própria tia Lígia, ensinaram-no a ler e a escrever. Resultado: com 6 anos, o menino de aquário Washington já havia lido os 17 volumes da coleção infantil do Monteiro Lobato e seus ídolos eram não os reis, príncipes e princesas de Quintana, mas os brasileiros e lobatianos Emília, a boneca irreverente, e Visconde de Sabugosa, o simpático anti-herói, duas personagens que retratam um pouco o comportamento irreverente e anti-herói de Washington. E mais: estaria nascendo ali o espírito verde-amarelo que de uma forma ou de outra inspirou a carreira de Washington, inclusive o nome da sua agência?

 

" Você tem os dedos no pulso do Brasil", teria dito a ele uma vez Marcio Moreira, importante executivo brasileiro do grupo mundial da agência McCann-Erickson. Não-muito-obrigado, teria respondido Washington em outra ocasião, ao poderoso grupo de publicidade do primeiro mundo, Chiat Day, quando o convidou a dirigir uma agência em Nova Iorque, fundado na razão de que, para Washington, seu primeiro - e prioritário - mundo era o Brasil:


 

...em 80 fui convidado para montar, como sócio, a Chiat Day de Nova Iorque. Mas eu tinha tanta certeza de que queria ficar no

 

 

Brasil e de que não daria tão certo lá fora que não me senti tentado. Achava mais legal fazer daqui para lá. Sou meio galera. Fui vice-presidente do Corinthians. Adoro pastel de queijo da feira do Pacaembu. A idéia de trabalhar fora não me encantava. Gosto de viajar na hora que eu quiser. Mas prefiro morar aqui. A minha busca sempre foi ter poder suficiente para dizer: "Welcome to the first world"(...)(OLIVETTO, 1998)

 

 

Em outras ocasiões, também, Washington - que se diz " meio galera" - deixa transparecer seu lado nacionalista, invertendo o modo de olhar o Brasil como " um outro jeito de ser Primeiro Mundo" ( Trip #93) :

 

 

Não acho que o Brasil fique na América do Sul. Essa identificação com o Mercosul não tenho na cabeça. O Brasil é um corpo à parte, como a China. Fui à China dar uma palestra, e o que me espantou lá foi eles terem o mais moderno e o mais antigo país do mundo simultaneamente. (...) ( OLIVETTO, 2001)

 

 

1957. Um ano depois de mudar para a casa da tia Ligia, no final da consulta com um médico na rua Oscar Freire, Washington simplesmente saiu caminhando, sem saber direito como - ele conta - o que o qualificou a voltar à casa dos pais, agora mudados do bairro classe-média City Lapa, na zona Oeste de São Paulo Capital, para uma casa maior no Tatuapé, Zona Leste, bairro originalmente meio operário, meio vinícola, onde ficavam antigamente as chácaras de muitos imigrantes italianos que lidavam com vinho. No Tatuapéficava também o estádio do Corínthians, time favorito de Washington, ao qual ele tinha sido apresentado pelo tio Armando aos três anos de idade, quando ganhou um fardamento completo de goleiro igual ao do Gilmar, clube do qual, por tão apaixonado, viria a ser vice-presidente de Marketing, em 1981, ajudando a criar e a consolidar a famosa Democracia Corinthiana6 integrada pelos jogadores Sócrates e Casagrande, entre outros, que mudou a forma de administrar o time, na época - os próprios jogadores elegeram o colega de time Zé Maria como técnico - e, inclusive, apoiou abertamente a campanha diretas já contra a ditadura militar, fazendo os jogadores do Corinthians entrarem em campo com a suspeitíssima palavra democracia escrita na camiseta somada a outra palavra também perigosa - vote - na partida próxima à eleição de 1982, a primeira eleição direta para governador, no país, desde 64. Morais (2005:222) relata que esse período do Corinthians entrou

6 Tema de tese de doutorado, transformou-se no livro Democracia Corintiana – A Utopia em Jogo, escrito pelo jornalista Ricardo Gozzi, São Paulo: Boitempo, 2002


 

 

para a história do Brasil porque, conforme o cientista político Emir Sader, citado por ele:" quando ninguém no país podia votar, os jogadores do mais popular time brasileiro conquistavam o direito de decidir sobre seus rumos".

 

Em 1956, Washington voltou da casa da tia, de posse do poderoso capital simbólico e handicap como ex-paralítico infantil e a primeira coisa que ouviu do pai foi um alerta carinhosamente severo: " Você está mimado demais e não pode esquecer que o importante nesta vida é estudar e trabalhar", conta Fernando Moraes ( 2005:55).

 

Essa frase o acompanharia pelo resto da vida, instigando suas buscas criativas à exaustão, a tal ponto que ficou conhecido, junto com o diretor de arte Francesc Petit, como a dupla de criadores que mais produzia na DPZ, em sua época: 2/3 dos trabalhos de toda a equipe de criação, relata Morais ( 2005), eram criados por Olivetto e Petit. Workhaolic? - pergunta a repórter da revista Istoégente ( 2000) a Washington:

 

Como não sofro com isso, não me considero. Para mim, trabalhar é divertido. Trabalho como formiga e vivo como cigarra. Trabalhar como formiga permite que viva como cigarra, me realimente e volte a ser a formiga eficiente. Não vejo mérito em quem trabalha fora do horário, fim de semana. É falta de competência. (OLIVETTO, 2000)

 

 

 

O chamado primário, hoje 1º grau, Washinton cursou com um ano de vantagem sobre os colegas em uma escola de freiras, o Educandário Espírito Santo ; a primeira parte do 2º grau, o ginásio, em um rígido colégio particular de padres agostinianos, o Colégio Agostiano, no qual - ele mesmo se denuncia - foi aluno medíocre e contestador, da turma do fundão, que mal e mal conseguia passar de ano, autor de rebeldias autônomas como, por exemplo, mandar fazer um carimbo falso, igual ao dos padres, para carimbar a sua ficha de presença à missa, livrando-se da obrigação religiosa por obra de uma saída irreverente e criativa, qualidades que mais tarde muito iriam lhe servir como criador publicitário. E, finalmente, o antigo clássico, coroamento do 2º grau, concluiu no Colégio Pais Leme. Todos, colégios considerados de boa qualidade e, ressalte-se, particulares.

 

Colégio de freiras, colégios de padres, porém, as únicas referências religiosas nos relatos de Washington - um italiano de quatro costados nada especialmente devoto - parecem ter sido providenciar o carimbo falso de frequentador de missa e mandar gravar som de pedras de gelo caindo em um copo, no meio da música Ave Maria, de Gounot, para anunciar à sua equipe que havia chegado a hora do pôr-do-whisky, 6 da tarde, em sua W/Brasil, conforme relata Morais ( 2005).

 

Para Washington, o maior significado da sua vida escolar, mais que a busca de conteúdo, era a convivência, "fundamental para a vida’’, ele avalia, bem pouco convicto do valor do conhecimento formal e admirador do saber buscado aleatoriamente, ao sabor da curiosidade, postura que o moveria vida afora, na construção não apenas do seu capital cultural, mas na luta interna do campo da publicidade, em sua busca por diferir dos seus pares:

 

Meu interesse pelo conhecimento surgiu fora da sala de aula. Nunca tive como objetivo principal obter notas ou diplomas. ( OLIVETTO, 2003)

 

 

Em 1965, aos 14 anos, Washington deu-se conta de que havia uma saída aglutinadora para aquele seu duplo desejo de unir vendas com escrita: a publicidade. Mais especificamente, a área de criação publicitária, onde o trabalho gira em torno de vendas traduzidas por palavras e imagens. Assim, agradaria ao pai e, claro, a si próprio. Como explicou à revista A Próxima Viagem:

 

 

Descobri cedo na vida para que eu servia. Aos 18 anos, já publicitário, meus patamares mudaram rapidamente. Em seis meses, passei de estudante de classe média a redator de propaganda muito bem pago. ( OLIVETTO, 2003)

 

 

 

 

 

De hippie a yuppie

 

 

 

 

Em 1972, porém, o momento histórico não estava para valentias estudantis, ainda que muitos estudantes brasileiros teimassem em lutar na clandestinidade de movimentos de guerrilha urbana como o MR-8 - Movimento Revolucionário 8 de Outubro, uma facção mais radical do PC do B - por exemplo, contra os arbítrios da chamada gloriosa revolução de 64 implantada no Brasil por militares que depuseram o presidente João Goulart alegando proteger a segurança nacional contra o comunismo, apagaram do vocabulário a palavra democracia e impuseram uma censura tão pesada à imprensa, principalmente Veja e a imprensa alternativa como O Pasquim, o jornal Movimento e dois grandes jornais, o Jornal da Tarde, onde ficaram famosas as receitas de culinária, e o jornal O Estado de São Paulo, com os versos de Os Lusíadas de Camões, publicados no lugar das notícias vetadas.

 

Censura, porém, que não teria perturbado outros grandes jornais como Folha de São Paulo, O Globo e Jornal do Brasil, por exemplo, cujos - segundo Mino Carta garante, em entrevista (24/03/04) - nunca sofreram censura, porque integravam a mídia que nos idos de 63, 64 " implorava pela intervenção militar":

 

Em cima da destruição da memória, alguns jornais inventam que sofreram. O Jornal do Brasil nunca foi censurado. A Folha de São Paulo nunca foi censurada. A Folha de São Paulo não só nunca foi censurada, como emprestava a sua C-14 [carro tipo perua, usado para transportar o jornal] para recolher torturados ou pessoas que iriam ser torturadas na Oban [Operação Bandeirante7].(...) ( CARTA, 2004)

 

 

Conforme Carta ( 2004), a Folha de São Paulo, que conquistou milhares de novos leitores calcada no seu apoio ao movimento Diretas Já, em 1984, e que geraria mais tarde um slogan criado pela própria W/GGK de Washington - "o jornal que nunca se vende" - teria, nos anos de chumbo, passado incólume pela tesoura do Ministro da Justiça de Médici, Armando Falcão:

 

E hoje você vê esses anúncios da Folha – o jornal desse menino idiota chamado Otavinho [Otavio Frias Filho] – esses anúncios contam de um jeito que parece que a Folha, nos anos de chumbo, sofreu muito, mas não sofreu nada. Quando houve uma mínima pressão, o sr. Frias afastou o Cláudio Abramo da direção do jornal. (CARTA, 2004)

 

 

 

7 A Operação Bandeirante ou OBAN foi um centro de torturas e de combate às organizações armadas de esquerda, financiado por empresários e montado pelo Exército, em 1969, em São Paulo, na r. Tutóia; seu membro mais famoso: del. Sérgio Fleury.


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Para quem tinha 18 anos como Washington, porém, e não queria correr o risco de freqüentar os porões de tortura da ditadura na famigerada Rua Tutóia (São Paulo Capital) feito o redator publicitário Otoniel Santos Pereira, por exemplo, que passou lá 12 dias porque tinha abrigado um dirigente do PCB em sua casa, conta Morais ( 2005: 141), mais fácil e prudente era fingir-se de alienado, fazer o jogo do contente, apreciar discretamente a contracultura e virar hippie de boutique, como se zombava, na época, referindo-se aos simpatizantes urbanos do movimento pacifista Faça amor, não faça guerra, iniciado na Califórnia, nos Estados Unidos, nos anos 60, contra a Guerra do Vietnã e o establishment, a favor das drogas, da meditação e do amor livre ( leia-se sexo livre), como retratado no filme Hair ( 1968) e exaltado no festival de música de Woodstock ( 1969).

 

Os de boutique, feito Washington, não viviam em comunidades zen-místicas-macrobióticas, como os originais, mas subsistiam de mesada - no seu caso, mesadas do pai e da tia Lígia - e adotavam um visual parecido, misto de batas indianas com calça lee boca-de-sino, tamanco ou chinelo de couro com sola de pneu, cabelos compridos e barba e, às vezes, a fala amolecida por eventuais cigarros de maconha, por sinal, proibidíssimos pelo draconiano governo militar.

 

Essa era a maior burla dos de boutique: fumar cannabis escondido ou, ainda, aplaudir corajosamente Caetano Veloso cantando Tropicália, Chico Buarque e Gil cantando Cálice ou Geraldo Vandré, Pra não dizer que não falei de flores, entre outros artistas considerados subversivos pelos militares e pelo CCC, o raivoso Comando de Caça aos Comunistas, formado por jovens de extrema direita da universidade paulistana Mackenzie:

 

Em 1968 a peça "Roda Viva" começou a ser encenada. Teve vida curta. O recrudescimento do regime e as organizações de direita se encarregariam de tirá-la dos palcos. Em São Paulo, a Universidade Mackenzie, na rua Maria Antônia,em frente à USP era um dos centros do temido CCC - Comando de Caça aos Comunistas. Uma organização que recrutava seus membros entre os jovens menos politizados (e geralmente mais ricos) e organizava ações violentas contra quem eles chamavam de comunistas ou inimigos do regime. Um desses alvos foi a peça de Chico. No dia 17 de julho, um dos grupos do CCC invadiu o Teatro Galpão, em São Paulo. Os cenários foram destruídos e os atores espancados. À medida que o regime dos generais endurecia, seus seguidores iam mostrando as unhas. Do outro lado, a oposição cavava subterrâneos, nos quais muitos se


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perderiam na clandestinidade imposta pelo AI-5, de 13 de dezembro de 1968. (RIBEIRO, 2003 )

 

 

Washington, que com 12 anos havia lido toda a obra de Scott Fitzgerald, de O grande Gatsby, O ultimo magnata, Este lado do paraíso e Suave é a noite aos Seis contos da era do jazz, confessa-se apaixonado desde então pelo estilo de vida libertário e fora dos padrões dos loucos anos pintados por Fitzgerald:

 

Naquele momento [1964], enquanto o Brasil se fechava para o mundo sem que eu tivesse consciência, o mundo se abria para mim através das personagens de Fitzgerald, também sem que eu me desse conta. A maluquice, entre aspas, daquelas personagens ajudou a construir minha maturidade precoce, (...) (OLIVETTO, 2004:126)

 

 

Era 1968 e São Paulo vivia um clima de Quartier Latin, na rua Maria Antonia, Centro ( Vila Buarque), onde ficava o prédio da Filosofia da USP, da FAU - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e também da vizinha Mackenzie dos conservadores do CCC. Segundo depoimento ao jornalista Gilberto Dimenstein do pintor pós-moderno paulista Claudio Tozzi, que cursava a FAU na época, os estudantes fervilhavam naquela região:

 

"A Maria Antônia era o nosso Quartier Latin", afirma Tozzi, referindo-se ao boêmio bairro parisiense que, em maio de 68, viveu verdadeiras batalhas campais. A semelhança com Paris não se referia apenas à contestação violenta. "A região da Maria Antônia era muito festiva, um ponto de encontro, uma parte da cidade agradável e animada", diz Tozzi. ( TOZZI, In DIMENSTEIN, 2003)

 

 

 

A festiva Maria Antonia ficava nas mesmas redondezas da FAAP, que passaria a ser frequentada por Washington menos de um ano depois, quando o prédio da Filosofia já teria virado cinza. Naquele ano de 68, porém, a Rua Maria Antônia ebulia sintonizada com o que avassalava o mundo:

 

No contexto das inquietações mundiais de 1968 - especialmente a revolta dos estudantes da França, as manifestações estudantis da Universidade da Califórnia, Berkeley, a Primavera de Praga, a revolta dos negros nos Estados Unidos - o Brasil também participou do clima convulso com sua própria especificidade. A Faculdade de Filosofia da Maria Antônia estava na intensa movimentação política e cultural desse período. O local era o ponto de encontro dos estudantes, onde todos se colocavam na vanguarda do pensamento


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crítico, numa posição frente às condições sociais, políticas e culturais da época. Era tempo de passeatas, assembléias, manifestos, reivindicações e tudo culminou com o trágico acontecimento de 2 e 3 de outubro de 1968, quando o edifício da Maria Antonia foi incendiado. (Sobre a USP)

 

Nesse cenário agitado, Washington Olivetto adolescente via-se assim: um Gatsby à brasileira, dândi tupiniquim com alma dividida entre o playboy e o hippie, nascido no bairro classe-média da City Lapa e criado na popular zona leste de São Paulo, no Tatuapé - bairro considerado mais de boas posses que de bons gostos - e protegido desde a infância pelos pais, avós e principalmente pela tia Ligia, que proporcionava a ele vida de rico sem ser rico, presenteando-o também generosamente com almoços nos restaurantes mais chiques da Capital e viagens ao Rio de Janeiro, sem contar o famoso Karman-Ghia vermelho cujo pneu furou em frente à agência de propaganda onde, em 1971, Washington entrou para pedir o telefone emprestado para ligar ao borracheiro e, num lance bem ao seu estilo caradura, acabou arranjando o seu 1º emprego, como contou à Istoé Gente ( Ed. 21 de fevereiro de 2000).:

 

Ia para uma das duas faculdades que fazia em São Paulo (e que não terminei). O pneu do carro furou onde havia uma pequena agência de publicidade chamada HGP. Eu era ruim para trocar pneus e então resolvi pedir um estágio. Disse ao dono da agência que tinha furado o pneu e que o meu pneu não furava duas vezes na mesma rua. Portanto, que ele devia me dar uma oportunidade porque senão era ele quem perderia a oportunidade. O sujeito achou engraçado e me deu uma chance. ( OLIVETTO, 2000)

 

A teoria da finesse cosmopolita estranha ao tranqüilo e familiar bairro classe-média baixa do Tatuapé vinha de Fitzgerald,

 

Fitzgeral influenciou também outros dos meus hábitos, como o gosto pela música, inicialmente pelo jazz e depois particularmente por Cole Porter, além de uma visível predileção pelas boas maneiras e até uma certa frescura na escolha de viagens, hotéis, drinques, cardápios e outros detalhes que, para muitos, podem parecer supérfluos, mas que para mim são essenciais. Certamente isso, somado à minha caretice congênita, me motivou a buscar ser bem-sucedido desde muito jovem para poder promover meus próprios anos loucos de uma maneira responsável.(...) (OLIVETTO, 2004:127)

 

 

A prática da teoria de Fitzgerald, antes de Washington começar a trabalhar em propaganda, vinha da tia rica e de seu marido, Armando, como contou à Gula:

 

Uns tios por parte de pai, que eram bem-sucedidos, levavam-me bastante a restaurantes. Era o auge do Gigetto, onde a gente encontrava todos os artistas da época. Ainda criança, conheci o La Paillote, no Ipiranga, com aquele camarão exuberante, e restaurantes clássicos de São Paulo, como o La Casserole, no Largo do Arouche. ( OLIVETTO, 2005)

 

No entanto, à essa suposta sofisticação fitzgeraldiana há que se acrescentar o lado Tatuapé de Washington, pop, suburbano, corintiano, classe-média assumido, sem o mínimo pudor de gostar do popular, um lado inegável em toda a sua obra criativa, capital simbólico fundamental no seu modo de diferir no campo, que ele chama de roubar da vida para devolver ao consumidor sob a forma de propaganda, lado realçado incansavelmente por ele toda vez que convidado a falar em seu estilo, e testemunhado pelo redator e colunista publicitário Stalimir Vieira - seu apadrinhado na DPZ em início de carreira e mais tarde empregado da sua equipe de criação na W/Brasil:

 

Com o ingresso do Washington na DPZ, a linguagem criativa da propaganda dos anos 80 ganharia um tom mais popularesco, até então, restrito aos anúncios de varejo. Só para ficar na mesma agência, eu diria que saía de cena a "erudição" de um Neil Ferreira - ex-jornalista e redator que fazia dupla com Zaragoza - e entrava a "cultura popular" do Washington; o "britanismo" do humor cedia espaço à piada escrachada, tipicamente brasileira. (...) ( VIEIRA, 2003)

 

O movimento hippie pacifista aliado ao movimento feminista Women's Lib, comandado por Betty Friedan nos Estados Unidos, com inspiração em Simone de Beauvoir e sua obra O segundo sexo, entre outras influências, se por um lado dava espaço para a emergência de uma mulher com papéis masculinos, mais participante da vida moderna e integrada à força de trabalho, por outro também propiciava o surgimento de um homem mais feminino, menos machão, anti-herói, até, como o encarnado pelo ator e diretor Woody Allen - muito admirado na época - em seus filmes Um assaltante bem trapalhão ( 1969), Bananas (1971), Tudo o que você sempre quis saber sobre sexo...( 1972), O dorminhoco (1973) ou o clássico Noivo neurótico, noiva nervosa ( 1977). Um novo homem com permissão para fragilidades, sensibilidades, sentimentalismos, delicadezas, diálogos, enfim, um homem que podia substituir o físico forte e viril por uma conversa inteligente e bem-humorada, como Washington, então um jovem candidato a produtor de bens simbólicos da propaganda

em um mercado que começava a vicejar em consumos parcelados, de carros a TVs e LPs, garantidos pelo chamado Milagre Brasileiro e pelo crédito direto ao consumidor.

 

Tipicamente pensador da publicidade dos anos 70, Washington cunhou uma frase que se constituiu marcante capital simbólico tradutor desse novo homem pós-feminismo, cuja força vem do mais do cérebro que do porte: "Eu sempre achei que o cartão é mais importante do que as flores." (2004: 97)

 

 

Aquilo que Bourdieu chama de lacuna estrutural cabia como uma luva no jeito de ser de Washington. Quem faria tão bem o papel de anti-herói popular culto na publicidade brasileira habitada por redatores britânicos e eruditos - como ressaltou Stalimir - se não um garoto da Zona Leste, Tatuapé, bairro proletário, meio industrial e também das primeiras chácaras vinícolas, que abrigava famílias italianas imigrantes, cortado por um trilho de trem - recém-chegado ao campo onde dominavam os perfis de homens da geração dos anos 40, filhos de uma cultura bem mais machista e conservadora nas relações com as mulheres, sem falar nas tormentas éticas que os acometiam, herdeiros de um pensamento de esquerda filho de Marx e Prestes?

 

Washington, ainda que consciente dos males do regime político da época, pertencia a uma geração que, de maneira geral, acostumou-se a não juntar política com a vida, alienada mais por sobrevivência que por convicção, e que pautou sua carreira por jamais misturar publicidade com política. Nem quando era empregado, nem mais tarde, quando patrão: "Gosto de vender algo que as pessoas possam devolver à loja, caso não gostem. Não é o caso de um candidato", ele ironiza. Inclusive, nos quase 14 anos que permaneceu na DPZ ( 1973-1986), onde circularam importantes verbas governamentais como Receita Federal e Telesp, entre outras - Washington teria pedido para não atender às contas chamadas chapa branca e, por redator-revelação que era, liberado, como ele relata à revista Meus caros amigos ( 2005):

 

Quando comecei a trabalhar em publicidade, o Brasil vivia um sistema político com o qual eu não concordava e eu não queria fazer campanhas do governo. Trabalhava numa agência [DPZ] que foi extremamente carinhosa, respeitosa e bacana comigo, que permitiu eu me dar a esse luxo, me trataram como menino-prodígio, e me


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isolaram, “bom, você só quer iniciativa privada, você fica nessa praia que é bom para a agência”. (OLIVETTO, 2005)

 

 

Nos anos 70, começo da carreira de Washington, havia espaço para um criador mais delicado, ainda que inequivocamente viril. Um criador apaixonado pelas mulheres - sabidamente as grandes interlocutoras da propaganda e as mais importantes decisoras de consumo - a começar pela própria mãe, a quem ele dedicou seu livro Os piores textos de Washington Olivetto ( 2004). Ele confirma, na entrevista à Istoé Gente de 20 de fevereiro de 2000 :

 

A minha relação com mulheres, e incluo a minha mãe, sempre me acrescentou muito. O universo feminino acabou se refletindo no meu trabalho. Se pegar o momento da criação do garoto Bombril, em 1978, o modo como ele se dirigia à mulher era muito contemporâneo. ( OLIVETTO, 2000)

 

 

Como ilustração, atente-se aqui para a personagem do Garoto Bombril (78), uma das mais famosas criações publicitárias de Washington, que não apenas introduz o coloquialismo na propaganda brasileira - inspirado no estilo escrita falada de seu favorito J.D.Salinger, de " O apanhador no campo de centeio" (1951 ) - como passa claramente o discurso do anti-herói muito próximo das mulheres e as seduz não pelo machismo ou pela agressividade, mas pela doçura, fragilidade e até por uma certa dose de sentimentalismo em tom popular, como atesta outra de suas famosas criações para a Valisére, " O primeiro sutiã a gente não esquece". Em relato à Trip # 93 ( fev 2003), ele conta:

 

...sempre gostei muito de mulher, tenho facilidade de me relacionar bem com mulher. Meu sexto sentido vale por uma comitiva de mulheres, tenho o intuitivo muito forte. (OLIVETTO, 2003)

 

 

Em seu livro Intelectuais à Brasileira ( 2001) Sergio Miceli detecta o que considera uma feminilização na carreira de certos intelectuais brasileiros, facilitadora da atuação em um campo de produção de bens simbólicos como poderia ser, por exemplo, a publicidade, campo relativamente novo no Brasil, no final dos anos 60, caudatário do campo dos agenciadores de reclames classificados, cuja carreira havia sido escolhida por Washington:

 

Não é por acaso que, num estágio incipiente de formação de um campo especializado de produção de bens simbólicos, quando ainda não existe uma definição estrita do trabalho intelectual, o trabalho socialmente definido como simbólico recai sobre as mulheres e os homens que com elas se identificam ( grifo nosso) e que por essa via se apropriam dessa espécie de trabalho, ainda um tanto destituído de valor econômico, mas que pode vir a adquirir um valor específico (...) Ele [ este deslocamento] se realiza mediante uma transformação profunda do habitus, de um processo de

 

" feminilização social " (...) (MICELLI, 2001:25-26)

 

Micelli ( 2001:22) observa, estudando os escritores brasileiros do começo do século, que há entre eles duas determinações recorrentes: essa decisão de transformar-se em escritor associa-se à sua posição privilegiada na fratria (por exemplo, ser filho único, primogênito) ou ao seu handicap social ( falência, morte do pai, mas manutenção da network familiar), handicap biológico ( p.ex. tuberculose), ou, ainda, a estigmas físicos, que ele chama de hexis corporal ( p.ex: surdez, gagueira), condições que propiciam o desenvolvimento exacerbado da sensibilidade - capital básico de escritores - tipicamente atribuída ao feminino. Para o autor, a impossibilidade de assumir um papel masculino pleno, atuante, abre caminho para o papel da intelectualidade, o feminilizado.

 

Ao contrário dos redatores publicitários da época em que começou ( 1971), cuja primeira escolha profissional não tinha sido a publicidade, mas desvios de suas carreiras originais de jornalistas como Neil Ferreira, sociólogos, advogados, estudantes de Letras, entre outras, Washington escolheu, de livre e espontânea vontade, ser publicitário. Sem pudores éticos, remorsos marxistas ou sensibilidade a patrulhas ideológicas. Para haver o desvio, é necessário não ter receio de ser diferente, realça Luciano Miranda ( 2000) sintetizando, sem deixar dúvidas, que existir em um campo é diferir. Para Washington, ser publicitário não feria seu foro íntimo como o de seus antecessores, conforme declarou à revista Trip, em 2003:

 

 

Sou um publicitário que nasceu ( grifo nosso) publicitário, gosto de renovar a palavra publicidade. ( OLIVETTO, 2003 )


 

 

Naquela época, só alguém considerado muito alienado ou com auto-estima extremamente elevada teria o atrevimento de se sentir nascido publicitário, sem arriscar-se ao patrulhamento ideológico de seus pares, boa parte deles vinda das hostes ditas puras da literatura,

do cinema, do jornalismo, das artes. Washington, no entanto, mimado por todos que o rodearam e com um capital cultural que o blindava de aceitar ser chamado de ignorante, havia construído tal auto-estima que seu ego ampliado o centrava e o protegia das possíveis rejeições, mantendo-o firme no rumo sua meta: ser o melhor Washington Olivetto na categoria dos Washingtons Olivettos, como ele gosta de se declarar. Ou, como relata Morais ( 2005) ao reproduzir um diálogo de Washington com seu parceiro Gabriel Zellmeister:

 

-  E você, Washington, o que vai fazer da vida? (...)

 

-  Eu vou fazer o possível, 24 horas por dia, todos os dias,

para ser o melhor publicitário do mundo. ( MORAIS, 2005:135)

 

 

Quando Washington diz que todos o protegiam, não estava exagerando. No momento em que ele quis trocar a modesta HPG por outra agência, vários criadores famosos da época ( 71), impressionados com os trabalhos do jovem redator, teriam passado a mão no telefone e ligado para seus pares recomendando que o recebessem e facilitando o caminho para ele, apadrinhado, entre outros, por Hans Damman, da Lage, Damman, Ercilio Tranjan, da Denison, Sergio Graciotti, da Lince, Luis D'Horta, da Standard e João Palhares, da DPZ. O jornalista carioca Telmo Martino, conhecido como das penas mais venenosas da imprensa brasileira, vivia citando Washington em sua coluna, no Jornal da Tarde, de São Paulo, chamando-o carinhosamente de Golden Boy, pelo tanto de medalhas de ouro e prêmios que ganhava em concursos nacionais e internacionais. Francesc Petit, o P da DPZ, diretor de arte, seu parceiro por mais de uma década na DPZ e quase 20 anos mais velho que Washington, falava para quem quisesse ouvir que seu redator era " o maior publicitário do mundo", segundo relato do próprio Washington; e o poeta Mario Chamie, diretor de marketing da Olivetti, nos anos 70, considerava-o o seu "menino de estimação". ( MORAIS, 2005). Washington conta que naquela fase, todo mundo que trabalhava na DPZ tinha uma relação de adoração com ele.

 

Bourdieu (1996:306) afirma, citando Karl Popper, que do encontro entre uma "situação que coloca o problema (...) e um agente disposto a 'reconhecer' este problema 'objetivo' e torná-lo um 'assunto seu ' (...) é que se determina a solução específica". Para ele, o chamado espaço dos possíveis já está inscrito antes da ação acontecer, no que ele chama de arte de inventar já inventada. Mas, é preciso haver a recíproca de um habitus vivendo dentro do ator social, que impulsione àquela mudança.


Como Washington contou à About:

 

Da turma que começou comigo, eu era bem diferente, era aquele que queria ( grifo nosso) ser o publicitário. (OLIVETTO, 1998)

 

 

Washington, ao que parece, com seu ego forte e sólido capital cultural, já encontrava naquele momento histórico específico, um espaço dos possíveis bourdieuano inequívoco que o favorecia: alienado ou não, em 1972, quando ele se transforma em redator-revelação, o mercado paulistano de criação publicitária já havia sido profissionalizado pela geração anterior à sua - a da DPZ, da Almap, da Standard, da Norton - inclusive com uma oferta de formação universitária na ECA USP, na PUCSP, na ESPM, no curso de Comunicação da FAAP - Fundação Armando Álvares Penteado, esse último, onde Washington passaria no vestibular e se inscreveria como aluno em 1969, cursando-a junto com a de Psicologia, em outra instituição do bairro Higienópolis/SP, mais tarde chamada Faculdade Anhembi.

 

Como apregoa Bourdieu em As regras da arte (1996), a mudança de status do dominado rumo a dominante em um determinado campo é facilitada quando a vanguarda passa a contar também com consumidores daquela illusio - adesão coletiva à crença no fetiche da criatividade - no caso, os estudantes de Comunicação, que conferiam um status acadêmico ao capital específico de criatividade do criador publicitário.

 

Assistindo na FAAP a uma palestra de um dos mais famosos redatores publicitários da época - Neil Ferreira - Washington teria ficado impressionado, narra Fernando Morais (2005:50) com " a agilidade mental e a articulação daquele sujeito magrinho, de calça jeans de veludo e cabelos cacheados que além de inteligente fazia também muito sucesso com as mocinhas". Cultura e mulheres, fortes pontos de atração para o adolescente Washington.

 

Outro espaço dos possíveis muito claro na carreira de Washington deve-se à Rede Globo, que, como ressalta a matéria da revista Vencer ( 2004), ajudou Washington a se transformar em assumido camelô eletrônico nacional, sem a menor vergonha de aprofundar-se no ofício que viu o pai Virso

e o tio Armando praticarem a vida inteira, com muito orgulho, muitos prêmios, e ao que se sabe, razoável compensação financeira: o de vendedores.

 

 

Com sua vocação de grandeza, qualidade apurada e estética ainda hoje imbatível, a Globo puxou para o alto todo o mercado publicitário de televisão. (...) Washington Olivetto navegou com bastante desenvoltura na nova onda. Tanto que ele, certa vez, chamou a si mesmo de "camelô eletrônico". (WEVER, 2004)

 

 

Os dois cursos de graduação que Washington nunca concluiu, pois acabou se dedicando à carreira a partir dos 19 anos, eram freqüentados por ele mais por esporte que por estudo. Esporte era o convívio com colegas, viver rodeado de mulheres, fazer graça para as moças com sua verve aprendida prematura, já no treino da construção do seu capital social singular que o fazia sempre diferente dos outros. O estudo era quando queria, quando gostava da matéria e até frequentando determinadas aulas de outros cursos que não o seu, se o tema lhe interessasse. " Sou um curioso profissional", ele afirma, em uma de suas centenas de entrevistas.

 

Sua curiosidade foi importante ponte para o seu sucesso bastante jovem. Com apenas seis meses como redator, já na sua segunda agência, a Lince, sob a direção de criação de Sérgio Graciotti, Washington ganhou seu primeiro Leão de Bronze em Cannes ( 1971), com um comercial chamado Gota, criado para uma espécie de peça de vedação da torneira Deca, que impedia o pinga-pinga. Ousadamente, para o padrão visual da época, o comercial mostrava só a boca da torneira, vista de baixo, em big close, pingando intermitentemente e, na última cena, o pingo sugado de volta, para dentro da torneira. No áudio, o locutor informava em off das vantagens de vedação da peça e encerrava: "A partir de agora, se a sua torneira vazar, é porque você esqueceu de fechar". ( MORAIS, 2005:66) Esse primeiro prêmio em Cannes, que Washington ganhou com apenas meio ano de carreira, fez com que ele extrapolasse a mídia especializada e fosse parar na mídia dos negócios, reconhecido em 1972 como " a revelação da propaganda brasileira", segundo Morais ( 2005:67). Revelação que sabia como ninguém usar seus capitais para se tornar famoso no campo, reforça o colunista publicitário Ehrlich, do site A janela publicitária:


 

Washington Olivetto sempre soube que em propaganda é fundamental ser conhecido. 

 

A Janela Publicitária é testemunha disso

desde seu primeiro ano, em 1977. Quando a coluna promovia a premiação

"Seleção da Janela", quase que semanalmente Olivetto telefonava de São Paulo 

para nos chamar a atenção para algum anúncio seu que estivesse sendo veiculado no 

Rio naquele dia ou no dia seguinte. ( EHRLICH, 2000)

 

 

Além de usar a mídia em seu favor, Washington soube como ninguém antes dele aproveitar as oportunidades que tinha para projetar-se em duas plataformas: vendendo suas campanhas com confessa autoria sua, tête a tête aos clientes da DPZ - empresários do porte de um Olavo Setúbal, por exemplo, presidente do Banco Itaú e ex-governador de São Paulo, entre outros; e proferir palestras pelo Brasil e pelo mundo, primeiro como redator superpremiado, depois mais tarde como o megapremiado presidente da W/Brasil, tarefa a que, segundo Morais ( 2005: 158), todos os outros redatores se furtavam e ele, " louquinho por um brilhareco" conforme suas próprias palavras, agarrava com as duas mãos.

 

Depois do Leão conquistado com a torneira Deca, o salário que Washington ganhava na agência Lince, dos R$ 2.800,00 que recebia na HPG tinha saltado para R$ 18.000,00, em menos de um ano. Em 1972, a Lince funde-se com a agência de Julio Ribeiro e Armando Mihanovich e vira MPM-Casabranca, onde Washington viria a conhecer o artista plástico e diretor de arte Gabriel Zellmeister, amigo leal que estaria quase sempre ao seu lado, mais tarde na DPZ, para onde Washington mudou-se em 1973, e ainda, em 1989, quando transforma sua multinacional W/GGK em W/Brasil. Aliás, perguntado em um perfil ping-pong de um site de esportes sobre qual sua melhor qualidade, Washington responde, a palo seco: lealdade. " Nao conheço nenhum cachorro mais leal do que eu", ele garante, de novo, em entrevista à About (29/09/1998).

 

Pois foi exatamente esse valor - a lealdade - tão entranhado em seu habitus, que acabou movendo Washington a finalmente tomar a decisão de sair da DPZ e fundar a sua agência, depois de tantos anos e de tantos convites tentadores de multinacionais como a suíça GGK, admiradora do seu trabalho criativo constantemente premiado em Cannes, onde conheceu Paul Gredinger, um dos gês da GGK. Lealdade a seu amigo Gabriel, que embora simples funcionário, e ainda que bem situado na hierarquia, vinha já há algum tempo sugerindo ao chefe Petit - sem ser perguntado - decisões administrativas de enxugamento de equipe e fechamento de escritórios, que acabariam desagradando
 ao P da DPZ. A verdade, segundo Morais ( 2005), é que Petit e Gabriel nunca simpatizaram um com o outro, talvez ciúmes, pelo profundo afeto que ambos nutriam pelo mesmo redator. Um dia, em março de 1986, quando Washington estava no Rio de Janeiro, em reunião, Petit mandou o departamento de RH demitir sumariamente Gabriel Zellmeister da DPZ. Quando voltou de viagem, Washington teria ido tirar satisfações do diretor de arte catalão. E Petit, breve e claro, respondido:

 

 

O Gabi era ótimo, mas estava disputando o meu lugar aqui dentro, e a agência é minha. Eu sou o dono, então demiti. ( MORAIS 2005:232)

 

 

 

 

De publicitário a publicitário do século

 

 

 

 

Ruptura. Petit era o dono, Gabriel, não. E nem Washington, que, embora dito por muitos, inclusive por Nizan Guanaes, como "a quarta letra da DPZ", jamais recebeu de Duailibi, Petit ou Zaragoza convite para se tornar sócio. Bem ao contrário. Esse não-convite era inclusive de caso bem pensado, como explica Petit:

 

Não abro mão de um tostão da minha participação para ninguém. Muito menos para o Washington. Gosto muito do Washington como parceiro e amigo, mas ele não é de aceitar ser minoritário em nada. Ele não pode ser o sócio menos importante, não passa pela cabeça dele algo diferente. E a presença dele aqui iria destruir a sociedade existente entre nós. ( PETIT, in MORAIS, 2005: 218)

 

 

A partir do dia da demissão de Gabriel da DPZ, segundo Morais ( 2005) Washington começou seriamente a pensar em abrir a sua própria agência, que teria mais a ver com um projeto diferente de agência que com dinheiro.

 

Bourdieu (1996) observa que uma revolução bem sucedida é o produto do encontro entre dois processos relativamente independentes que ocorrem no campo e fora dele. Naquele momento histórico da demissão de Gabriel (1986) acontecia um processo externo ao campo da publicidade que já começava a tangenciar cada vez mais de perto o campo da publicidade: um processo chamado globalização. Grandes empresas esparramavam seus braços pelo mundo, buscando produzir onde era

mais barato, montar onde o custo valia a pena e vender mundialmente, com margens menores mas ganhos de escala, ampliando os seus mercados. Caíam as fronteiras e as grandes agências de propaganda, cada vez mais pertencentes a grupos de comunicação gigantescos nas mãos de players administradores de sociedades anônimas, precisavam aumentar o valor de suas ações e seus dividendos e também, com suas contas alinhadas mundialmente, precisavam seguir no rastro das expansões de seus clientes, agora em uma dimensão muito mais ampla que aquela dos anos 40, onde a agência Thompson veio ao Brasil atrás de seu cliente GM.

 

Bourdieu ( 1996) também ensina: o capital social e o cultural tramam o capital econômico. No campo da produção cultural, tudo começa com um pretenso desinteresse pelo interesse, feito Washington demonstrava, ainda no seu 13º ano na DPZ, aparentemente sem pressa de trocar e agência, ponderado e estratégico como nos primeiros anos de sua trajetória: " No início da minha carreira, eu tive a sorte de sempre optar por ganhar menos para aprender mais", ele conta, em entrevista à revista About ( 1998).

 

 

Sua qualidade de leal, - " gosto de vestir a camiseta de onde estou", ele teria dito em uma entrevista - o fizeram permanecer quase uma década e meia na DPZ, para onde se mudou vindo da Casabranca, em 1973, e onde permaneceu recusando salários ainda mais milionários dos que o seu tradicionalmente milionário, porque, entre outras coisas, na DPZ ele tinha vantagens, projeção, trabalhava entre amigos, era respeitado, fazia o que queria e o que gostava, era mimado por todos, o menino-prodígio de uma equipe de colegas mais velhos com os quais saía todas as noites para beber nos lugares mais badalados de São Paulo - Anexo, Plano's, Rodeio, La C'adoro - e além disso era ainda o palestrante oficial da agência, acumulando capital simbólico também fora do campo da publicidade - no campo acadêmico, corporativo, esportivo, musical - enfim, era o caçula e o reizinho, como sempre foi, desde menino.

 

Na DPZ, em dupla com Francesc Petit - que na época do seu ingresso tinha 38 anos enquanto ele apenas 21 - Washington criou campanhas que atravessaram o século e as fronteiras. A do Garoto
Bombril (1978), por exemplo, chegou a ir para o livro de recordes Guiness como a campanha com

o personagem que mais tempo ficou em cartaz. Na DPZ, também, Washington continuaria sua precoce carreira leonina de Cannes. Ao ver o pai Virso que havia acabado de se formar em Direito ser barrado em anúncios de emprego por ter mais de 40 anos, Washington criou um comercial de TV onde mostrava Churchill, Gandhi, Einstein, De Gaulle entre outros famosos já idosos, dizendo que todos eles tinham mudado o destino da humanidade e que todos eles, também, tinham mais de 40 anos. Finalizava afirmando que o Brasil não podia abrir mão da experiência dos seus homens com mais de 40 anos e pedia aos empregadores que abolissem dos seus anúncios essa barreira da idade. Resultado: Leão de Ouro em Cannes.

 

Começava ali, em 1973, a sua estrela internacional, onde construiu importante capital social com seus pares do chamado 1º mundo da publicidade: Inglaterra e Estados Unidos, ajudando a colocar o Brasil no podium internacional, considerado nos anos 90 o terceiro país mais criativo do mundo, em publicidade, junto com os outros dois países anglo-saxões. Uma questão de criatividade mas, também, como próprio Washington ressalta, de visibilidade, como uma "espécie de certificado ISO 14000 das minhas qualidades", ele ressalta. ( 1998, revista About).

 

Quando comecei, a publicidade e o publicitário não tinham a exagerada aceitação social que têm hoje. Indiretamente tenho grande mérito e culpa nisso. Fui o cara que inventou essa visibilidade. Muitos publicitários de talento se prevaleceram disso, mas alguns entenderam errado e imaginam que o negócio é ficar famoso e depois fazer uns trabalhos. Isso gerou uma visibilidade desproporcional até ao tamanho desse negócio. ( OLIVETTO, 1998)

 

 

Entre o primeiro Leão em Cannes de 1971 e o começo do terceiro milênio, Washington acumulou em torno de meia centena de troféus do festival francês, afora centenas de outros em premiações diversas, no Brasil e no exterior, inclusive o raras vezes concedido Grand Prix do Festival Clio, americano, para seu comercial A Semana, da Revista Época ( 2001), prêmios que usou estrategicamente, aqui e ali, para alavancar sua carreira e aumentar seu passe, contagiando agências, colegas, clientes, enfim, o negócio em si da publicidade, fazendo com que os anunciantes passassem a valorizar agências que tivessem sido premiadas. O jornal Gazeta Mercantil ( 1999) registra ano
 após ano o dábliu - misto pessoa física e jurídica - como um dos criadores publicitários a quem

os maiores anunciantes do Brasil admiram, paripassu com a outro ex-redator de sua equipe, Nizan Guanaes:

 

Pesquisa realizada pelo jornal Gazeta Mercantil com as 35 empresas que mais investem em publicidade no País aponta Nizan Guanaes, da DM9DDB, como o publicitário mais criativo e eficaz do Brasil. Ele obteve 14 votos. Em segundo lugar, com 11 votos, aparece Washington Olivetto, da W/Brasil. 8

 

Depois de mais de uma década de sucesso atrás de sucesso, ele havia projetado seu nome lá em cima, tanto no campo da publicidade, como no campo da mídia, como no campo do esporte, como no campo da música, como no campo do business. Havia criado, inclusive, um jeito de vestir à Olivetto: o das gravatas divertidas e o do terno irreverentemente usado com tênis:

 

Assumindo o folclórico visual de criativo publicitário com sua divertida coleção de gravatas, Washington Olivetto não só tornou-se uma grife que transcendeu o mundo publicitário, como conquistou o respeito do próprio mercado, simbolizando, como nenhum outro profissional, o homem de criação que deu certo nesta atividade tão duramente disputada. ( EHRLICH, 2000)

 

 

Obstinado freqüentador da mídia, toda vez que Washington aparecia, aparecia também, naturalmente, a DPZ. Depois de muitos convites para trabalhar no exterior - todos recusados gentilmente - as pessoas começaram a lhe perguntar porque não era sócio da DPZ. Em entrevista à revista About ( 1998), ele explica porque, apesar de ser rei na agência da Avenida Cidade Jardim de São Paulo, nunca foi, como ele diz na entrevista à Trip,( 2003) o dono do castelo DPZ:

 

As pessoas ingenuamente achavam que eu queria sociedade na agência. E a última coisa que gostaria, na minha vida, era ser sócio minoritário do Roberto, do Petit e do Zaragoza. Para quê? Para que eles mandassem em mim? O que eu queria era fazer um projeto (...) (OLIVETTO, 1998)

 

 

Seu projeto rendeu mais que dinheiro e sucesso, fama. Em uma votação aberta pela internet promovida pelo seu site www.janela.com.br, em dezembro de 1999, o colunista Marcio Ehrlich, apontou Washington Olivetto como o publicitário do século, à frente dos 100 publicitários mais famosos, escolhido por 151 dos 324 publicitários votantes convidados

8 Meio & Mensagem, Nizan Guanaes e DM9DDB são os preferidos dos anunciantes.12/05/1999 - 12:30


 a apontar quem mais contribuiu para o desenvolvimento da atividade no Brasil durante o Século XX. Entre os 100 mais votados, figura Washington em 1º lugar, Nizan Guanaes em 3º, Roberto Duailibi em 4º, Francesc Petit em 10º, José Zaragoza em 12º e Neil Ferreira em 13º.

 

 

Sua frequência à grande mídia, porém, não se limitou a notícias esporádicas. Em recente levantamento ( 2006) feito pelo site Ego, o nome de Olivetto aparece entre os dez brasileiros que mais são notícia no exterior.9 Washington já foi capa de Veja, Cult, Meus Caros Amigos, Exame, entrevista na Playboy , na alemã Archive, já frequentou os noticiosos de TV e rádio, centro do programa Roda Viva (TVE) e rodou pelo menos 1 bilhão de vezes nas eletrolas do Brasil, aos embalos de Jorge Benjor, em 1994, com a música Alô, alô, W/Brasil, que vendeu 1 bilhão de cópias e rendeu artigo da editora Laurel Wentz no jornal Advertising Age, o mais famoso jornal especializado em publicidade do mundo:

 

 

Só no Brasil uma música sobre uma agência de publicidade poderia se tornar o hit numero um do país, cantado nas praias e nas ruas e tocado incessantemente no rádio. Tudo começou quando o publicitário de São Paulo Washington Olivetto convidou seu velho amigo, o cantor de música popular brasileira.... ( WENTZ, 1994)10

 

 

Cumprem-se assim as duas etapas que Bourdieu chama de Princípios de hierarquização na conquista da autonomia no campo da produção cultural: a hierarquização externa, quando o grande público avaliza o autor e dá a ele a primazia; e a hierarquização interna, quando os próprios pares, desconhecidos do grande público, reconhecem o valor do colega.

 

No dia 8 de julho de 1986, quatro meses depois da demissão de Zellmeister, Washington convocou 30 jornalistas - da imprensa especializada à geral - para um almoço no restaurante Manhatan, nos Jardins, em São Paulo, e anunciou a sua nova

9 Fonte: DCI, São Paulo, 7 abr. 2006, Mídia & Marketing, p. B1.

 

10Tradução nossa de: Only in Brazil would a song about an ad agency become the country's number one hit, sung on the beaches and streets and played incessantly on the radio. It all started when Sao Paulo adman Washington Olivetto invited his old friend, popular Brazilian singer ( ...) ( WENTZ, 1994)



 

agência em sociedade com a GGK, espetacularizando, ao melhor estilo Debord ( 1997, A sociedade do espetáculo), a sua marca, postura aliás que ele mesmo assume para a W/Brasil, a de servir-se do remédio que oferece aos seus clientes, isto é, a tratar sua agência como uma marca a ser vendida. O que poderia ser visto como uma mera troca de patamar hierárquico em outros campos, no da publicidade foi transformada por Washington em um evento de repercussão desproporcional, sob o mote, claro sustentador de sua incansável realimentação de capital simbólico: " O que tem que ser grande é a idéia. Não a agência", crítica sutil às megagências que naquela década já começavam a acomodar seus corpanzis multinacionacionais desacomodando as pequenas e médias nacionais do mercado.

 

Sua saída da DPZ foi notícia no principal noticioso da Globo, Jornal Nacional, como " a mais retumbante troca de emprego ocorrida na propaganda brasileira nos últimos vinte anos" ( MORAIS, 2005:246). A revista Exame ( idem) prognosticou que quatro clientes da DPZ seguiriam com Washington: Itaú, Nestlé, Grendene e Bombril. Acertou em dois: Grendene e Bombril. A nova W/GGK, onde Washington detinha 50% do capital e os suíços a outra metade, tinha uma equipe pequena, da qual faziam parte Nizan Guanaes e Camila Franco, dois redatores que vieram com ele da DPZ, e mais os outros criadores da antiga GGK, os redatores Ricardo Freire e Rose Ferraz e os diretores de arte Mauricio de Souza e Marc Boss. No atendimento, um jovem diretor de nome Afonso Serra.

 

Entre as megaidéias, Washington inovou as práticas profissionais da criação: mandou derrubar as paredes do departamento de criação; todos passaram a trabalhar juntos - não mais em salinhas fechadas - e em um ambiente 100% informatizado; todas as duplas de criação passaram a defender seus trabalhos junto aos clientes, pessoalmente, junto com o atendimento, e a agência continuava com a mesma posição de Washington pessoa física: não atender nem a conta de governo, nem a de político e construir a agência com "o maior índice de felicidade per capita", slogan que sublinhava a sua posição de que em uma agência de publicidade é preciso saber administrar o astral, - " tão importante quanto a administração do caixa", ele garante - desestimulando a competição interna e estimulando a co-autoria, para que sua equipe comprovasse o que Washington acredita:" é a felicidade que traz a fortuna" e não o contrário.

 

 

Com apenas 6 meses de vida, a agência de Washington conquistou o prêmio de Agência do Ano no Prêmio Colunistas. No ano seguinte ( 1987), foi a agência mais premiada do Brasil, em Cannes, e em 88 e 89, a mais premiada do mundo em Cannes. Na nova agência, o Garoto Bombril continuava suas tiradas parodiando os momentos históricos pelos quais passava país. A Grendene entregava sua conta de Melissa, incondicionalmente. Uma garota usando seu primeiro sutiã levava a marca Valisére ao status de mais lembrada. Um cachorrinho salsicha vendia amortecedores e transformava a raça basset na raça Cofap. Um comercial da Folha de São Paulo mostrando Hitler afirmava que é possível contar uma mentira só falando a verdade. Sutiã e Hitler, aliás, são os dois únicos comerciais brasileiros inseridos no livro da jornalista americana Bernice Kanner (1999), especialista em marketing, The 100 Best TV Commercials And Why They Worked (Times Books), que elegeu os cem melhores comerciais do mundo do século XX.

 

Em 1988, a W/GGK já ocupava o 18º lugar no ranking nacional, tinha mais de 30 clientes e, segundo Morais (2005: 285), " estava deixando de ser vista apenas como uma hotshop que realizava uma Revolução Criativa semelhante às da Almap nos anos 60 e da DPZ nos 70". Para o mercado, a W/GGK se convertera em " uma máquina de fazer dinheiro", ele afirma ( Morais, 2005:295).

 

Com o sucesso financeiro da empreitada e 168 prêmios depois ( MORAIS, 2005:286), em 1989, Washington resolve comprar de volta os 50% dos suíços e nacionalizar sua agência, assumindo a brasilidade com dois novos sócios: o leal brasileiro Gabriel Zellmeister e o leal catalão Javier Llusá. Começava a era W/Brasil. Entre outros trabalhos, inovou a linguagem publicitária para seu cliente Unibanco, fazendo a primeira campanha interativa da TV brasileira, onde os telespectadores escolhiam a dupla que iria encenar o casal Unibanco, façanha que acabou notícia no New York Times, segundo Morais ( 2005). Washington trouxe ao Brasil também Bill Gates para anunciar o Homebanking Unibanco implantado com tecnologia Microsoft. Ao encerrar o comercial de TV que explicava o novo serviço, aflora claramente o espírito irreverente de boneca Emília: quando Washington faz um dos homens mais ricos do mundo perguntar aos telespectadores brasileiros, em inglês, com legendas em português: "por que meu banco não pensou nisso antes?"


 

Nesse mesmo ano de 1989, a cadeia produtiva criativa inaugurada na DPZ gera mais um fruto: Nizan Guanaes sai da W/Brasil e, acompanhado do diretor de atendimento da W/GGK, Afonso Serra, abre a DM9 em São Paulo, em parceria financeira com o Grupo Icatu.

 

Washington deixa de ser o filho da DPZ e passa, indiretamente, ao papel de pai da DM9. <>

 

 

Fonte: Livro Do Porão ao Poder, de Graça Craidy, ( São Paulo: Dialética, 2022: pag 118-143)  AMAZON:https://www.amazon.com.br/por%C3%A3o-poder-publicit%C3%A1rios-trajet%C3%B3rias-Washington-ebook/dp/B0B1VWB88Y



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